Pelourinho Acessível (Salvador, Bahia)

O projeto Pelourinho Acessível, em Salvador, é a demonstração de que é possível tornar o patrimônio histórico acessível, mesmo que for tombado, ao contrário do que muita gente pensa. Vem comigo!

Estou em frente ao Cruzeiro de São Francisco. A Igreja de São Francisco está ao fundo. Circulando o cruzeiro e o largo, uma faixa nivelada permite que a cadeira de rodas circule sem trepidação.

Estou em frente ao Cruzeiro de São Francisco. Note a faixa nivelada que permite que a cadeira de rodas transite sem trepidação. (Todas as fotos pertencem ao meu acervo, exceto quando indicado.)

Em setembro de 2017, minhas férias me levaram pela segunda vez ao Pelourinho, na cidade de Salvador.

Você sabia que, em 2013, foi inaugurada uma rota de acessibilidade na área, para que pessoas com deficiência também tenham algum acesso a esse patrimônio?

Neste post, falarei sobre o processo que levou à materialização desse sonho.

Além disso, compartilharei fotos e indicarei um local onde você pode ir ao banheiro ou fazer um lanche. São coisas básicas, mas nem sempre acessíveis, não é mesmo?

Vamos em frente, pra que eu te conte tudo?

Nota: Post publicado em janeiro de 2017 e atualizado em dezembro de 2020.

 

O que é o Pelourinho?

 

Sabe aqueles lugares que a gente não pode deixar de conhecer? Pois é, acho que o Pelourinho se enquadra nessa categoria.

Para conhecer um pouco da história, vale saber que, na época da escravidão, em diversas cidades, os escravos eram castigados em pelourinhos. Sem dúvida, são como cicatrizes de um passado que nos envergonha.

Em Salvador, o local de castigo se transformou no rico conjunto histórico e arquitetônico do Pelourinho.

É uma região efervescente, pois concentra igrejas, construções barrocas, restaurantes e artesanato, além da música do famoso Olodum. Lá encontramos a sede do grupo, que enche as ladeiras com suas cores vivas e a contagiante percussão dos tambores.

 

Patrimônio tombado X acessibilidade

 

A falta de acessibilidade no local vem, primeiramente, por razões geográficas, pois há ladeiras por todos os lados. Em segundo lugar, as razões são arquitetônicas, pois as ruas e edificações são muito antigas.

Pelo valor histórico, o Pelourinho é Patrimônio Cultural da Humanidade, tombado pela Unesco em 1985. Esse título é mais um fator que dificulta as intervenções na área.

Mas quem disse que a região não poderia se tornar acessível pelo menos em parte? Pois isso foi feito.

A seguir, vou contar como foi o processo para o planejamento e execução do projeto Pelourinho Acessível. Na sequência, falo do roteiro de visitação que fizemos.

Vamos em frente!

 

Do alto da escadaria da Fundação Casa de Jorge Amado fotografei o Largo do Pelourinho. Na foto, vc pode observar a ladeira, os sobrados em estilo colonial, uma igreja barroca.

Tirei esta foto do alto da escadaria da Fundação Casa de Jorge Amado, à qual só tive acesso porque foi construída uma “escarrampa”

 

A rota acessível

 

A execução da rota acessível no Pelourinho iniciou-se em abril de 2012.

Porém, antes disso, muitas reuniões aconteceram, com o objetivo de convencer o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) a liberar as intervenções na área.

Após essa etapa, foi preciso reunir parcerias e iniciar o planejamento.

A luta contou com o empenho de pessoas que estavam na hora e no lugar certos, sem as quais não teria sido possível chegar a esse resultado. Entre elas, estavam operários dedicados:

O trabalho destes operários, ao escolher cada uma das pedras, parecia muito mais destinado, como diz a canção popular, a ladrilhar ruas com pedrinhas de brilhante, que revesti-las com pedras ‘cabeça de nego’. Cada pedra foi cuidadosamente escolhida, observando a irregularidade da sua forma e a regularidade da superfície, de modo que, ao revestir o concreto ciclópico nas travessias, não causasse qualquer trepidação. Projeto Piloto de Acessibilidade: Centro Histórico de Salvador (pág. 44) [Para baixar, clique na frase azul]

 

Primeira etapa do projeto

 

Na primeira etapa de implantação do projeto Pelourinho Acessível, não foi possível garantir o acesso a todos os locais da rota.

Porém, possibilitou-se o acesso aos que são mais relevantes para o interesse coletivo, como o Museu da Cidade, a Fundação Casa Jorge Amado e o Solar Ferrão.

Além disso, agora temos condições de contemplar o conjunto arquitetônico, assim como observar as características do ambiente que trazem valor histórico e cultural a este espaço.

E quais foram exatamente as intervenções que tornaram o Pelô mais próximo das pessoas com deficiência?

 

Lista das intervenções:

 

Este mapa mostra as intervenções para construção de rotas de acessibilidade no Pelourinho. Foi retirado desta publicação.

Este mapa, que retirei desta publicação, mostra a rota Pelourinho Acessível. Clique nele para ampliar.

 

♦ Na rota acessível, ocorreu o alargamento da calçada em uma das laterais da rua, que passou de 0,60m para 1,50m de largura. O meio-fio permaneceu, mas ampliou-se a largura com concreto lavado. Como resultado, o trajeto ficou seguro para cadeiras de rodas.

♦ Para cruzar a rua, foram construídas travessias, de forma artesanal. Faço questão de te contar como foi, conforme a descrição que li no Projeto Piloto.

Primeiramente, os operários retiraram as pedras do local onde seria construída a travessia. Depois, as recolocaram, uma a uma, escolhendo as mais lisas e uniformes, de forma a evitar trepidação que prejudicasse o deslocamento de pessoas com deficiência.

Não sei quanto a você, mas esse tipo de ação me emociona, porque mostra que as coisas são possíveis quando há boa vontade.

♦ Recuperação e ampliação da passarela no Largo de São Francisco.

♦ Construção de escarrampa (rampa através da escada) na Fundação Casa de Jorge Amado

 

O calçamento das vias do Pelourinho foi feito com pedras denominadas "cabeça de nego", assentadas sobre areia. Elas são irregulares e causam muita trepidação.

O calçamento das vias do Pelourinho havia sido feito com pedras irregulares, que causavam trepidação. Então…

Passarela nivelada, em que as pedras foram retiradas e posteriormente recolocadas sobre base de concreto.

… no projeto Pelourinho Acessível, as pedras foram retiradas e posteriormente recolocadas.

 

Tudo foi documentado!

 

O registro do processo de construção da Rota Acessível está em uma publicação abrangente, que ainda não estava disponível on-line.

Porém, entrei em contato com os responsáveis pelo projeto para ter acesso a ela, porque queria torná-la acessível a todos. Então, agora, você pode baixá-la! Para fazer isso, é só clicar aqui .

Nessa obra, temos acesso a detalhes do planejamento da acessibilidade e também ficamos a par do processo de execução da obra. Sem dúvida, é uma verdadeira aula, necessária aos que lutam pela acessibilidade no patrimônio histórico.

A Secretaria da Justiça Cidadania e Direitos Humanos elaborou e coordenou o projeto, em parceria com o Escritório de Referência do Centro Antigo e a Fundação Mário Leal Ferreira. Contou com apoio do Iphan, da Companhia de Desenvolvimento da Bahia e da Secretaria de Cultura da Bahia através do Instituto do Patrimônio Histórico Cultural da Bahia.

 

Derrubando mitos

 

“é certo que não se pode desmerecer o valor testemunhal de um imóvel ou um conjunto arquitetônico, entretanto, o patrimônio não pode ser colocado acima dos direitos do cidadão.” Projeto Piloto de Acessibilidade: Centro Histórico de Salvador (pág. 24)

 

O projeto Pelourinho Acessível se tornou uma referência, pois rompe com o mito de que a promoção da acessibilidade não é compatível com a manutenção do patrimônio histórico tombado.

Se as condições de circulação não oferecem autonomia e segurança à pessoa com deficiência, em qualquer lugar que seja, isso representa uma barreira ao seu direito de ir e vir e ao direto à cidade. Portanto, a situação nada mais é que um desrespeito não somente à pessoa, como às leis vigentes.

 

Identidade do Pelourinho não foi afetada

 

Agradeço a Alexandre Baroni pela entrevista que me concedeu, a fim de que este post oferecesse detalhes do projeto. Ele é a pessoa à frente da Superintendência dos Direitos da Pessoa com Deficiência – Sudef – e colaborou ativamente para tornar realidade essa obra. Alexandre é cadeirante e ativista dos direitos das pessoas com deficiência.

Conversamos longamente, para que ficasse mais claro para mim o processo que levou o Pelourinho a se tornar mais amigável com os cadeirantes. Então, pude concluir que não foi simples. Para você ter uma ideia, levou um ano somente para que a aprovação do projeto pelo Iphan fosse possível.

Porém, por trás desse processo, havia uma equipe incansável. Como resultado, a rota foi inaugurada em dezembro de 2013, sem que a identidade visual do patrimônio sofresse danos.

Um trabalho louvável, não acha?

 

Na pág. 47 da publicação sobre a Projeto Pelô Acessível, vc vê a obra de nivelamento da passarela no Largo de São Francisco. Na foto da esquerda, em cadeira de rodas, o superintendente dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Alexandre Baroni.

Na foto da esquerda, em cadeira de rodas, o superintendente dos Direitos da Pessoa com Deficiência, Alexandre Baroni.

 

Inspiração para outras cidades

 

Esperamos que a intervenção no Pelourinho inspire outras cidades históricas a assegurar ao cidadão com deficiência a possibilidade de usufruir dos espaços históricos.

Lamentavelmente, muitos ainda enxergam a acessibilidade como “concessão” ou “ato caritativo”, mas ela é fundamental e, por isso, um direito assegurado pela legislação.

É necessário que nós, pessoas com deficiência, ousemos sair da invisibilidade para “invadir” os espaços e exigir que a lei seja cumprida, por mais desafiadora que seja a empreitada. Sem essa atitude, será difícil a acessibilidade avançar em nosso país.

Para me acompanhar na visita que fiz ao Pelourinho, prossiga! Ou, se desejar, pule direto para o fim do post e tenha acesso aos links do Para saber mais.

 

Roteiro da nossa visita a Salvador

 

Contratamos o querido Sr. Florisvaldo para nos levar do hotel ao Pelourinho e transitar conosco pela cidade de Salvador

 

Antes de iniciarmos o passeio, deixo algumas informações sobre a segurança pública na região.

Ficamos sabendo que há muitas câmeras na parte mais movimentada, assim como viaturas policiais. Por isso, nesta área, é possível circular sem risco de roubo, mas nem por isso descuide de seus itens pessoais.

Na parte menos movimentada (ou seja, nos becos), não há câmeras nem policiais. Então, é melhor evitar se aventurar por lá.

Sugiro que reserve pelo menos 2 horas para experimentar a rota acessível sem pressa, principalmente se quiser visitar a igreja e comprar artesanato nas lojinhas…

 

Passo 1 – Terreiro de Jesus

 

Este passeio foi realizado em 2017, portanto muita coisa deve ter mudado, e espero que para melhor.

Iniciando o passeio, nosso motorista nos deixou no Terreiro de Jesus (veja o mapa acima). De lá, pela passarela acessível, fomos até a Igreja e Convento de São Francisco de Assis.

Uma pessoa em cadeira de rodas consegue visitar toda a área do térreo, porque há rampas interligando os ambientes. E há banheiro possível de ser usado, embora não seja acessível, mas a porta é larga, e há área de giro.

 

Estas fotos mostram o interior rico em ouro da Igreja de São Francisco de Assis, no Pelourinho.

Estas fotos mostram os painéis de azulejo do claustro e o impressionante interior rico em ouro da Igreja

 

Após, tomamos um lanche delicioso no Cantinho da Casa, uma cafeteria ao lado do Cruzeiro de São Francisco, localizada dentro da livraria da Federação Espírita do Estado da Bahia.

Entramos por uma rampa em frente à porta, muito íngreme, e depois subimos mais um trecho de rampa interna, para a qual necessitamos de ajuda.

Lá dentro, o sol escaldante cedeu lugar ao frescor, e o burburinho foi substituído pelo sossego.

Foram as gentilíssimas Isa e Sabrina que nos atenderam. Elas nos informaram que o prédio tem banheiro acessível, que não chegamos a conhecer, por falta de tempo hábil.

 

O Cantinho da Casa tem rampa, embora íngreme, e o prédio onde se localiza tem banheiro acessível.

Estou lanchando no delicioso Cantinho da Casa. Na segunda foto, observe a rampa.

 

Passo 2 – Descendo a ladeira

 

A seguir, pela rota acessível, descemos a rua Gregório de Matos.

As amigas Ida e Solange estavam de scooter, mas eu usava cadeira manual. Apesar disso, consegui descer tocando a cadeira, sem derrapar e sem necessidade de ajuda.

Atravessamos a rua no local que dá acesso à Fundação Casa de Jorge Amado, sem trepidação, e seguimos pela escarrampa.

Até aí, sucesso total!

 

Descemos a Rua Gregório de Matos ao som contagiante da banda Swing do Pelô. Observe, do lado esquerdo, a calçada alargada.

Descemos a Rua Gregório de Matos ao som contagiante da banda Swing do Pelô. Observe, do lado esquerdo, a calçada alargada.

Atravessamos neste trecho para alcançar a rampa que dá acesso ao Museu da Cidade e à Fundação Casa de Jorge Amado.

Atravessamos neste trecho, que era mais nivelado e tinha  meio-fio rebaixado. Foi assim que alcançamos a escarrampa, que está no fundo da foto, à esquerda da rua.

 

Passo 3 – Ladeira para retornar

 

A seguir, paramos um pouco para admirar a bela paisagem do alto da escarrampa. Prosseguindo, retornamos pela Rua Alfredo de Brito, que é muito íngreme. As meninas tentaram me puxar usando a scooter, mas não tivemos sucesso.

Então, algumas pessoas me ofereceram ajuda, incluindo estrangeiros. Foi assim que consegui retornar até o Terreiro de Jesus.

O comércio da região é quase todo inacessível, o que é realmente lamentável, mas de fato as condições não são simples. Há uma ou outra entrada plana, e é possível vencer o degrau de algumas lojas com ajuda.

 

Solange, à esquerda, e Ida, à direita, foram minhas acompanhantes neste passeio. As duas estavam usando scooter.

Solange, à esquerda, e Ida, à direita, foram minhas acompanhantes neste passeio.

 

Passo 4 – Elevador Lacerda

 

A seguir, fomos “a pé” até o Elevador Lacerda, numa rota que oferece algumas dificuldades para cadeirantes. Nessa região, os rebaixamentos de calçada eram íngremes e inseguros, e em alguns locais foi preciso passar sobre um calçamento pontiagudo. Várias vezes precisamos recorrer a ajuda dos passantes.

Pessoas com deficiência podem utilizar o Elevador Lacerda sem nenhum custo. A vista lá do alto é poderosa, mas praticamente inacessível a um cadeirante, pois o parapeito é alto.

Quando estive no local pela primeira vez, ainda usava aparelho ortopédico e muletas, além da cadeira de rodas. Assim, pude entrar no Palácio Rio Branco (antigo Palácio do Governo, que não é acessível) e conseguir fotos lindas.

Abaixo, uma das fotos da época.

 

Foto que tirei a partir do Palácio do Governo. É possível observar o Elevador Lacerda, à direita, e o Mercado Modelo, ao fundo.

 

Passo 5 – Mercado Modelo

 

Após a descida pelo Elevador, tem-se acesso ao Mercado Modelo, que foi todo reformado, segundo fiquei sabendo. Por isso, temos uma boa razão para retornar!

Pegamos novamente o carro, com nosso indefectível motorista, que nos aguardava próximo ao Mercado. Então, fomos até a Igreja do Bonfim, que é acessível, mas não descemos. Estávamos cansadas demais para essa aventura… rs

O retorno ao hotel levou cerca de uma hora, boa parte dela admirando a belíssima orla de Salvador. Imperdível é pouco, concorda?

Se você não conhece, agende. Se conhece, retorne!

 

Para saber mais:

 

Mobilidade e acessibilidade urbana | Iphan

Livro sobre as intervenções no Pelourinho (para baixar)

Salvador: as dicas do site Viaje na Viagem

 

Na mesma viagem:

 

Hospedagem no Iberostar Bahia

Passeio à Vila da Praia do Forte

 

About Laura Martins

Laura Martins criou o blog Cadeira Voadora em 2011 para compartilhar suas experiências de viagem em cadeira de rodas. Para ela, viajar desenvolve inúmeras habilidades, nos faz menos intolerantes por conviver com as diferenças e ajuda a construir inclusão, porque as cidades vão ficando mais preparadas à medida que as pessoas vão se fazendo visíveis. Entre em contato pelo e-mail contato@lauramartins.net.

2 Comments

  1. Pingback: Mitologias Da Rua Chile - Salvador da Bahia

  2. Vamos num cruzeiro para a Europa em abril de 2018, e passaremos por Salvador por 01 dia. Estamos com intenção de ir a pé do Porto até o Pelourinho. Somos eu , minha esposa e minha filha adulta que é cadeirante. Sou eu que conduzo a cadeira pois minha filha não tem coordenação motora. Pelo streetview do google , parece que dá para ir até lá e depois seguir até o elevador Lacerda, descer e retornar ao Porto. O que você nos aconselharia? Parabéns pelo site. Muito útil.

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