Gratidão é memória do coração | Da série “Minha História”

#MINHAHISTÓRIA

Hoje, fazendo um exercício para o curso de psicologia positiva, me lembrei deste episódio que irei lhes contar…

Após terminar e entregar o teste, senti vontade de compartilhar a história aqui no blog. Afinal, a lembrança do fato me sintonizou com uma energia leve e gostosa. Nada melhor para um início de semana, concordam?

Cliquei meu pai quando se debruçava na janela para admirar as plantas. Ele tinha uma excelente “vibe”.

Anos de privações

Quando eu era criança, o padrão econômico da minha família era bastante precário. Havíamos sofrido o impacto da doença repentina que me acometeu (uma mielite transversa). Ela havia deixado como consequência a deficiência de membros inferiores. Não poderíamos continuar residindo no interior, e a vida na “cidade grande” levava embora os recursos financeiros de que dispúnhamos.

Foram longos anos de privações. Meu pai não tinha condições de custear nem mesmo uma cadeira de rodas das mais simples. Quanto ao Estado, dispensava exclusivamente aparelho ortopédico e muletas canadenses. Eu usava os equipamentos, mas não o tempo inteiro, a fim de evitar ferimentos nas pernas. A solução era engatinhar pela casa, o que me rendeu joelhos ralados mas também evitou atrofia.

Mais ou menos aos 12 anos de idade, precisei fazer duas cirurgias. O recurso era a internação em enfermaria pelo INSS, em hospital onde eu já havia estado internada por duas vezes. À época, ele era uma respeitada instituição para reabilitação e cirurgia ortopédica, mas os cuidados com os pacientes deixavam a desejar.

Primeira cirurgia

O atendimento era pouco humanizado, e fui bastante maltratada na primeira cirurgia, assim como os adolescentes que estavam internados com a mesma finalidade.

Vou dar um exemplo simples, a fim de não ocupar vocês com narrativas de sofrimento (não é este o objetivo do Cadeira Voadora, né?). O máximo que consegui de medicação após a cirurgia foi uma Novalgina, mesmo assim porque pedi, devido às fortes dores.

Meus pais se entristeceram muito com o ocorrido, ainda mais sabendo que dali a alguns meses eu precisaria me submeter à mesma cirurgia, só que do outro lado do corpo.

Meu pai então comentou o fato com seu chefe, que, para nossa surpresa, se ofereceu para custear um apartamento naquele mesmo hospital. A cirurgia ficaria por conta do INSS, e ele ficaria responsável pelos demais gastos. Meu pai lhe pagaria em longo prazo, do jeito que pudesse.

Transcorrida a segunda cirurgia, nosso espanto era total.

A diferença entre apartamento e enfermaria não se resumia ao espaço físico e à alimentação: tudo era diferente, a começar do preparo para a intervenção cirúrgica.

O tratamento que recebi da enfermeira, no trajeto do quarto até o bloco cirúrgico, era algo surpreendente naquele hospital, tal era a gentileza. Os médicos do bloco também me trataram de forma diferente. E, ao chegar ao quarto, não precisei pedir medicamento. Já estavam prescritos antibiótico e analgésico, que me foram ministrados imediatamente.

O chefe do meu pai, a princípio, foi recebendo o pagamento devido, que lhe ia sendo entregue devagar, em parcelas pequenas. Mas uma nova surpresa nos aguardava.

O mundo é listrado

Pois não é que aquele senhor deixou de aceitar que o dinheiro lhe fosse devolvido? Após algumas “prestações”, comunicou que não era necessário continuar o pagamento. A dívida estava quitada.

Essa história marcou nossas vidas, é claro, e não só porque o pagamento foi recusado, ou porque fui bem tratada na segunda cirurgia.

Na minha memória, um intenso registro foi gerado pelo sofrimento que nos foi evitado. Ali, muito cedo, pude aprender que havia gente má no mundo, sim, mas eu não iria ficar fixada na experiência anterior. A atitude do chefe de meu pai me mostrou que as pessoas não são iguais, o mundo não tem uniformidade e não é só de uma cor. O mundo é listrado, e aquele homem era portador dessa lição para nós.

Além disso, aprendi que sofrimentos podem ser evitados, ainda que a dor não o seja. O simples fato de meu pai ter compartilhado a dor gerou uma onda de compaixão.

Infelizmente não me lembro do nome do nosso benfeitor. Meu pai já faleceu, então não tenho como perguntar. Talvez minha mãe se lembre; prometo verificar, assim que ela voltar de viagem.

O que importa, porém, é a gratidão que sinto. Onde quer que este senhor esteja, que ele possa ser beneficiado por essa energia, sabendo que seu ato produziu um grande bem. E continua reverberando…