“Beleza Oculta” é um filme que não caiu no gosto da crítica, por conta de falhas técnicas, mas caiu no meu. Não discutirei os aspectos técnicos, mas concordo com os analistas com relação a esse aspecto. Porém, a maioria deles deixou de trabalhar o nível simbólico da narrativa e as questões psicológicas tratadas, e é exatamente isso que farei aqui, por considerar essencial.
Assim, já deixo um alerta: assista ao filme com atenção concentrada nos aspectos simbólicos, nas metáforas, nas emoções. Evite observar exclusivamente a história que será contada, que, por sinal, é intrigante. Com certeza, em todos os filmes há um nível metafórico a ser analisado. Neste, porém, se não observamos as entrelinhas, a narrativa poderá ficar pobre e até incompreensível.
Não é o que parece
Em “Beleza oculta”, três símbolos estão em foco: o amor, o tempo e a morte. E a presença desses elementos na vida dos personagens é objeto de reflexão até o final.
Não é por acaso, então, que os três símbolos são personificados. Cada um será representado por um ator, que trará histórias e reflexões a serem levadas em consideração.
Em alguns momentos você poderá ficar confuso, sem saber o que é realidade e o que é fantasia. Te aconselho a não perder tempo com isso. Afinal, o que é fantasia e o que é realidade em nossas vidas? E como julgar a dor do outro?
Tudo é interpretação da realidade
Não existem fatos sem interpretação, ou seja, não há acontecimento puro. Já pensou nisso? O psiquismo de cada um interpreta os acontecimentos de acordo com o que a pessoa conhece do mundo, com o que viveu na infância, com os traumas que enfrentou.
E é por isso que todo ponto de vista é só a vista de um ponto.
Somos como os sábios cegos de uma parábola hindu. Quando chegou à cidade um homem montado em um elefante, os sábios quiseram apalpar o animal, pois ainda não o conheciam. Eram seis, e cada um tocou uma área diferente: a barriga, o marfim, a tromba… Por causa disso, o primeiro achou que o elefante era um ser gigantesco e firme como uma parede; o outro concluiu que era pontiagudo como uma lança; o que apalpou a tromba achou que era uma cobra mansa e sem dentes. E por aí vai.
Irritados, começaram a gritar e chamar os demais de loucos, bradando que estavam errados.
Ficaram horas nessa situação, quando o sétimo sábio chegou, conduzido por uma criança. Ele, que também era cego, pediu ao garoto que desenhasse o elefante no chão, e então apalpou o contorno da imagem. Percebeu assim que todos os sábios estavam certos e enganados ao mesmo tempo. A história finaliza com sua afirmação:
“– É assim que os homens se comportam perante a verdade. Pegam apenas numa parte, pensam que é o todo, e continuam tolos!”
Qualquer semelhança conosco não é mera coincidência, concorda? Agora, considere o filme: os amigos e sócios de Howard conseguiram empatizar e compreender o que estava acontecendo? Que julgamento fizeram da situação?
O processo de luto após uma perda
Penso que todos concordamos que seria mais saudável se, por um instante, tentássemos “calçar os sapatos do outro” a fim de buscar perceber melhor quem ele é e qual a sua dor. Com isso, não quero dizer que temos de passar a mão na cabeça uns dos outros. Mas será que os desafios da convivência não se atenuariam com essa prática?
Howard, o protagonista, é interpretado por Will Smith. Ele é um empresário de sucesso que está em depressão profunda pela perda da filha. Aos poucos iremos entender na totalidade o drama que o levou a esse estado, mas ficamos sabendo desde o início que a empresa não vai bem, afinal ele se afastou do trabalho e das pessoas. Seremos, então, testemunhas da terrível reação dos sócios e dos “amigos”.
- No desenrolar da trama, lembrem-se de prestar atenção nestes detalhes: Como Howard compreende o tempo, a morte, o amor? Como ele lida com cada um? E você? Como lida com eles no seu cotidiano? Qual é a sua verdade?
Penso que não há exceção: todos passamos por grandes perdas. No nosso caso, que somos pessoas com deficiência, a dor pode ser profunda, e fazer o luto pode ser trabalhoso. E por qual razão?
Curar o coração
É preciso lembrar que pessoas com deficiência não são iguais. Mas muitos de nós não perdemos somente a função de um membro, ou o uso de um sentido como a visão; perdemos a reconhecida imagem corporal e social, talvez o emprego, pode ser que também a função sexual e o controle dos esfíncteres. Teremos de reaprender tantas coisas… Seremos vistos como incapazes, quem sabe? E será afetado nosso direito de ir e vir conforme nossa vontade.
Certamente poderá haver traumas em razão dessas transformações, assim como em razão de outras ocorrências, como dor física, infecções, erros médicos e rejeição social.
Por isso, penso que este filme pode nos auxiliar a curar o coração, já que vai se dirigir mais ao lado inconsciente do que ao racional. Em instantes você terá empatizado com o personagem, e a dor dele passará a ser a sua. A partir disso, as reflexões que ele e os demais fizerem serão as nossas, e o bem-estar que cada um alcançar será também nosso.
Como se recuperar das perdas?
Ainda que muitos neguem ter passado por isso, o processo de recuperação pós-trauma não é nem um pouco simples. Há um período de luto, e não há nada de errado nisso, muito pelo contrário!
Contudo, os que nos cercam podem considerar que é melhor suprimir a tristeza – e por isso às vezes quase nos obrigam a “superar” o acontecimento. Não digo que seja útil deixar a pessoa se afogar na dor ou até mesmo eliminar a própria vida. Afinal, existe a possibilidade de buscar auxílio terapêutico, se for necessário. Mas também é prejudicial não permitir que a pessoa metabolize a tristeza, a preocupação, o medo e a raiva.
Uma analogia: se ferirmos um braço e fizermos de conta que nada aconteceu, pode surgir uma infecção, que poderá inclusive se agravar e causar problemas maiores. Com as emoções acontece o mesmo. Fingir que está tudo bem não cura a ferida que está dentro de nós, no coração, e ela pode se manifestar de muitas formas, como, por exemplo, numa intensa agressividade. Ou, como no filme, na fuga da realidade.
Para que a ferida interna não se transforme em doença física, ou em doença mental agravada, é preciso olhar para a dor, “conversar” com ela.
Terapia cinematográfica
É exatamente por causa dos sentidos que damos às cenas e aos diálogos que um filme pode ser extremamente terapêutico. Concentrados nas imagens, nem percebemos que o processo de empatia está acontecendo (não para todos, é preciso dizer). E olha aí que papel importante ela assume: podemos aprender com as vivências dos nossos semelhantes! Podemos até mesmo nos curar a partir desse processo, ao utilizá-lo para elaborar acontecimentos que não ficaram digeridos.
O final do filme surpreende. E, por isso, talvez você queira voltar o vídeo algumas vezes, para entender melhor. O que posso dizer é que foi terapêutico para mim, assim como me ajudou a compreender melhor a dor do outro. Tomara que seja útil para você também! Ah, veja o trailler! Está logo abaixo.
Um beijo empático,
Laura Martins
Para saber mais:
Beleza Oculta (Collateral Beauty)
Direção: David Frankel / Elenco: Will Smith, Kate Winslet, Keira Knightley e outros / Gênero: Drama / Nacionalidade: EUA
Para ler a história dos sábios completa, clique aqui.
Trailler