Aceitar-se e reconhecer-se por meio do brincar

Colaboradora: Mariane Ster*

 

Contraí uma poliomielite (paralisia infantil) aos 10 meses de idade. Passada a infecção pelo vírus, ficaram suas sequelas como herança para sempre. Acontece. Ou melhor, acontecia, pois, graças a Deus, essa doença foi erradicada em nosso país. Deixo a dica: vacinem seus filhos, netos, sobrinhos, primos, vizinhos, filhos de amigos e até de inimigos. Bem, o fato é que cresci tendo que lidar com uma deficiência em uma época que tratava muito pouco de inclusão.

Cresci numa época em que falar de deficiência era quase sempre falar de dor, de sacrifícios, de hospitais, enfim, de coisa boa quase nada. A não ser quando, sonho de toda criança, eu crescesse e fosse dona do meu nariz. Ah, pensava eu, nunca mais pisaria em um hospital ou em uma sala de fisioterapia. Mas ainda bem que o tempo passa e percebemos que nem tudo pode ser do jeito que queremos. Viva a maturidade!

 

O padrão de normalidade

Nesse período, ter algum tipo de deficiência era quase uma sentença sobre como seria o resto da vida. Nada de escola, nada de trabalho, nada de amores, desamores, família, viagens, carro, casa, futuro. Porque a ideia era de que a deficiência nos definia. Éramos, antes de qualquer outra coisa, deficientes. Não uma pessoa, um sujeito com uma deficiência, mas um deficiente. Alguém que dependeria da família ou do Estado até o fim da sua vida, que nunca sairia da postura de objeto das benesses estatais ou da caridade alheia.

 

Naquela época, a deficiência nos definia. Éramos, antes de qualquer outra coisa, deficientes. Não uma pessoa, um sujeito com uma deficiência, mas um deficiente.

 

E, de alguma forma, em algum momento, acreditei que pudesse ser assim mesmo, pois o mundo todo havia sido construído para quem se encaixava num padrão de normalidade. Normal era quem andava, quem tinha capacidade de subir escadas sem auxílio de ninguém, quem não tinha dificuldade em se relacionar com os outros, quem não tinha um cromossomo no lugar errado ou fora de ordem, quem enxergava, quem ouvia, quem tinha os dois braços e as duas pernas. As TVs, as revistas, os jornais, os livros corroboravam esse padrão. Afinal de contas, por que a Cinderela não podia perder o sapatinho de cristal em uma rampa? Por que o soldadinho, mesmo sendo de chumbo, foi esquecido numa caixa ao perder uma das pernas?

 

Brincar para superar as dores

Mas eu era uma criança e só sabia enfrentar a realidade de duas formas: brincando ou fazendo de tudo para fugir de uma sessão de fisioterapia. Para cada dor da fisioterapia (e eram muitas dores), havia um jogo ou uma boneca que a remediariam. Se há uma coisa que não se questiona é que criança brinca, tem que brincar. Toda criança. Qualquer criança.

Os estudiosos defendem o brincar como o momento de libertação das limitações do mundo real, como meio de aprendizagem, de participação e convivência, de autoconhecimento, de desenvolvimento de autoestima, etc. Para mim, funcionou de duas formas. Era um jeito de esquecer ou superar as dores, mas era igualmente um jeito de construir-me enquanto sujeito. Nada muito fácil.

 

Brinquedos produzidos pela Toy Like Me

Brinquedos produzidos pela Toy Like Me, reproduzindo características individuais que fazem com que a pessoa seja vista como “diferente”.

 

Quando eu era bem pequena, meus brinquedos preferidos eram um urso azul que mexia apenas os braços, o Téo, e um bonecão com o corpo vermelho imitando um macacão, o Fabinho, ambos de plástico e fora do padrão de normalidade vigente. Fora do padrão como eu era. Afinal de contas, que loucura era essa de urso azul com pernas e pescoço eternamente imóveis e uma criança com o corpo todo vermelho? Mais loucura ainda, como assim, uma menininha faladeira que não andava? Sem entender muito bem a situação e sem ter ainda qualquer consciência da forma como o mundo me via, ou melhor, via a deficiência antes de me ver, o que acontecia era que eu me identificava com aqueles brinquedos limitados que ainda assim eram brinquedos e cumpriam seu papel. Algo como: não ando, mas sou uma criança como as outras. Sensação essa reforçada pela ação da minha família que nunca me escondeu ou teve vergonha de mim e que cobrou de mim tudo o que era cobrado das outras crianças, como boas notas quando fui para a escola, respeito às pessoas pelo que elas eram, nada de palavrões (estes, eu me permiti falar depois de adulta, mas mesmo assim longe dos meus pais).

 

Brinquedos produzidos pela Playmobil mostrando pessoas que têm alguma deficiência

Brinquedos produzidos pela Playmobil mostrando pessoas que têm alguma deficiência

 

Talvez por isso, meus questionamentos quanto à imperfeição (?) do meu corpo somente me tenham chegado lá na adolescência, quando todo mundo, com deficiência ou não, encarna a paranoia e enxerga-se mais feio ou mais bonito do que realmente é. Mas eles – os questionamentos – vieram e, não bastassem as paranoias normais da idade, ainda vieram aquelas ligadas à deficiência.

Quando tinha por volta de cinco ou seis anos de idade, fui internada por um longo período no Hospital Arapiara, que já não existe mais, para fazer fisioterapia. Se um dia resolver escrever um livro autobiográfico, aliás, este lugar terá um capítulo só dele. Ali, conheci as dores de que eu fugia, mas conheci também outro lado da deficiência, além de perceber a interação entre as pessoas com deficiência e aquelas sem deficiência alguma. Foi meu primeiro contato com pessoas que trabalhavam, estudavam, namoravam, viviam a tal vida “normal” de que tanto eu ouvia falar e tudo em cima de suas cadeiras de rodas ou com suas bengalas, muletas, próteses. E, importante ressaltar, não havia ainda lei da acessibilidade e política de cotas de emprego. Não sei se a memória afetiva da infância as preservou, mas achava aquelas pessoas lindas e queria ser igual a elas. O que me levou a algumas enrascadas, diga-se de passagem, como o dia em que decidi descer uma rampa sozinha, porque eu já tinha visto a “galera” fazer e era “super fácil”. Resultado: me esborrachei contra a parede. Nada demais, no máximo um roxo ou outro, choro e uma história pra contar.

 

Quando eu era bem pequena, meus brinquedos preferidos eram fora do padrão como eu era.

 

Creio que quem leu até aqui deve estar pensando em qual é a conexão entre uma infância com brinquedos “com deficiência”, reconhecimento de si mesma enquanto sujeito e Arapiara. Mas explico. E, antes de explicar, devo dizer que muito foi omitido deliberadamente para que não eu não me estendesse muito mais nesse assunto que, a meu ver, é sempre introdução e desenvolvimento; impossível chegar a uma conclusão.

 

Reconhecer-se: a que será que se destina?

Têm a ver porque reconhecer-se como sujeito não é uma atitude que se toma do dia para a noite e nem acontece por uma única causa e, por mais contraditório que possa parecer, não acontece sem a interação com nossos pares. Somos seres sociais e, como tais, necessitamos do outro para sermos reconhecidos. E necessitamos de uma série de ações e vivências para que o processo seja iniciado e não pare em alguma das suas fases.

Quando uma criança se reconhece em um brinquedo, é como se ela recebesse um bilhete de uma sociedade inteira dizendo: “Nós sabemos que você existe e você faz parte dessa sociedade”. É o contrário da invisibilidade. Quando a indústria de brinquedos opta por reproduzir apenas o modelo Barbie de bonecas, condena à invisibilidade todas as crianças que fogem a esse padrão e incute em suas mentes um sentimento de inferioridade quanto a si mesmas e quanto às outras pessoas.

Daí o mérito de ações como a “Toy Like Me”, que apresenta bonecas e bonecos com clara indicação da deficiência ou tratamento que pretende representar. Ou ainda da personagem Tina Descolada, que viaja para diversos lugares, faz tudo o que quer sem deixar que a cadeira de rodas seja um obstáculo. Ou meu personagem favorito, o líder dos X-Men, Professor Xavier, ser um cadeirante sábio, humano e com superpoderes. Autoestima se constrói a partir da infância e é peça chave para a construção do sujeito. E nada melhor que trabalhar o assunto usando o brinquedo ou o desenho para representar pessoas empoderadas.

 

Bonecas produzidas pela Toy Like Me não apenas reproduzem a pessoa com deficiência, mas são bonitas, coloridas e se vestem de forma fashion

Bonecas produzidas pela Toy Like Me não apenas reproduzem a pessoa com deficiência, mas são bonitas, coloridas e se vestem de forma fashion

 

Tina Descolada é uma personagem criada pela psicóloga Marta Alencar a partir da boneca Bec

Tina Descolada é uma personagem criada pela psicóloga Marta Alencar a partir da boneca Becky. Tina é uma inspiração para crianças e adultos, porque convive bem com a própria deficiência, com a sociedade, com os desafios.

 

Além de mostrar brinquedos e personagens empoderados, é necessário também o encontro com o real, como foi o ocorrido comigo quando cheguei ao Hospital Arapiara e vi pessoas vivendo suas vidas sem que a deficiência fosse o limite. Foi ter alguém em quem me espelhar. Alguém que provavelmente teve seus brinquedos e tentou se reconhecer neles. E talvez, como eu consegui, também tenham conseguido, mesmo que a intenção do fabricante não tenha sido esta. Um reconhecimento mais fácil de ser explicado como efeito colateral que qualquer outra coisa. Mas que cumpriu seu papel inicial de gatilho do processo de reconhecimento de si mesmo, por meio do brincar e da fantasia.

 

Bichinhos de pelúcia também reproduzem o universo das pessoas com deficiência

Bichinhos de pelúcia também reproduzem o universo das pessoas com deficiência

 

E, que bom, a vida não para e vai nos apresentando tantas outras situações que só me deixam pensar que aceitar-se e reconhecer-se são processos contínuos e sem volta. Primeiro nos reconhecemos enquanto parte de um grupo. Depois descobrimos que somos capazes de estudar, trabalhar e nos manter, o que é outro processo muito poderoso de reconhecimento de si, e acontece no mundo do trabalho.

E, no meio disso tudo, reconhecer-se ainda enquanto mulher. E, cá entre nós, esse dá muito trabalho.

Muita coisa, não é mesmo? Mas viver é para os fortes. “O que a vida quer da gente é coragem”.

 

Para saber mais:

Toy Like Me | Página no Facebook

Tina Descolada | Blog

Tina Descolada | Página no Facebook

 

Mariane foto*A autora | Mariane Ster, cadeirante, cientista social formada pela FUNEDI/UEMG (Divinópolis).

Hoje bancária, atleticana apaixonada, fã incondicional dos felinos, nascida em Martinho Campos, na região Centro-Oeste de Minas Gerais, moradora de Belo Horizonte desde junho de 2004.

Gosta de ler, conversar, beber com os amigos, estar com a família, estar no mundo sem ignorá-lo, mas vivê-lo sempre e em grandes quantidades.

 

About Laura Martins

Laura Martins criou o blog Cadeira Voadora em 2011 para compartilhar suas experiências de viagem em cadeira de rodas. Para ela, viajar desenvolve inúmeras habilidades, nos faz menos intolerantes por conviver com as diferenças e ajuda a construir inclusão, porque as cidades vão ficando mais preparadas à medida que as pessoas vão se fazendo visíveis. Entre em contato pelo e-mail contato@lauramartins.net.

7 Comments

  1. Pingback: Bullying e solidão da criança com deficiência na escola

  2. Sim Mariane , “o que a vida quer da gente é coragem”… E “o bonito nas pessoas é que elas ainda nao estao prontas, acabadas”… no seu caso , no meu , no caso de tantos esse “acabamento” por fazer é nossa travessia. Beijo incandecente… Vai virar objeto de estudo pros meus alunos o seu texto , se voce deixar , é claro.

  3. Adorei ler o artigo. Parabéns!! Me senti orgulhosa de vc. Mas aviso, vou mostrar para a mamãe e ela vai saber que vc fala palavrões. Kkkk

  4. Boa Mariane.

  5. Maria josé Goulart Taucce

    Mariane é tudo de bom. Alegre, inteligente, comunicativa e linda. Foi um prazer ler esse artigo dela. Mas tem um grande defeito: ser atleticana. Um beijo Mariane. Zezé

  6. Nao é atoa que eu , Francisco e Cissa ( sua afilhada) somos orgulhosos de ter vc em nossas vidas!! Linda, inteligente, atleticana e escritora !!

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