Uma fotógrafa cadeirante em Ouro Preto

Carol munida de sua câmera fotográfica em Ouro Preto

Como sabemos, cadeirante, em Ouro Preto, com certeza enfrentará perrengue. Aliás, qualquer pessoa com mobilidade reduzida irá encontrar inúmeras barreiras nessa cidade histórica mineira. Ainda assim, a amiga Carol ousou confrontar a situação e visitar o local inúmeras vezes, para passear e fotografar.

Carolina Franco tem uma doença genética rara, chamada Osteogênesis Imperfecta, mais conhecida como Doença dos Ossos de Vidro. Ela se locomove ora usando andador, ora muletas, e às vezes cadeira de rodas, dependendo de suas condições no momento.

Por ironia, o sonho dessa moça era passear e fotografar Ouro Preto. Como foi possível ela se apaixonar justamente por uma cidade tão complicada pra andar?

Para falar a verdade, com seu amor pela fotografia, ela chegou a fazer fotos belíssimas na cidade. Uma delas foi até selecionada, pelo programa Terra de Minas*, como uma das 100 mais bonitas de Minas Gerais!

Para saber dessa história, continue lendo. É a própria Carolina quem vai te contar tudo!

[*Todas as fotografias pertencem ao acervo de Carolina Franco e estão protegidas por direitos autorais]

 

Uma fotógrafa cadeirante em Ouro Preto

Por Carolina Franco

 

Em 2020, primeiro ano de pandemia, fui convidada a colaborar, com algumas fotos minhas de Ouro Preto, na primeira edição da Revista Arte e Palavra, que havia sido criada pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro.

Fiquei muito lisonjeada com o convite, ainda mais tendo a chance de dividir o espaço com tantos profissionais e intelectuais que admiro. Foi uma oportunidade maravilhosa!

Também foi solicitado que eu escrevesse um texto sobre o que aquelas fotos representavam pra mim. Infelizmente, acabei não escrevendo a “verdade”…

 

Esta é a foto de Carol selecionada para o programa Terra de Minas*

Como a fotografia entrou em minha vida

 

Eu nunca me imaginei fazendo um monte de coisas que acabei conseguindo fazer e ainda faço. Um exemplo é a fotografia.

Nunca achei que seria para alguém como eu, com mobilidade reduzida e que, apesar do espírito aventureiro e sonhador, sempre teve que lidar com a limitação e os obstáculos impostos pela falta de acessibilidade.

Tenho Osteogênesis Imperfeita (tipo 4), uma doença rara, genética, mais conhecida como a doença dos “Ossos de Vidro”. Já tive mais de 50 fraturas e passei por 15 cirurgias ortopédicas, desde o meu nascimento.

Relembrando minha história, percebo que a fotografia sempre se fez presente na minha vida. Acabei ganhando a minha primeira câmera quando tinha uns 12 anos. Sou da época das câmeras analógicas.

A partir daí, nunca mais desgrudei dela. Ganhei a função de fotógrafa “oficial” da família, a responsável por registrar os almoços, encontros e festas. Na verdade, gosto mais de estar por trás das câmeras do que na frente.

No início de 2011, surgiu o convite para participar de um curso de fotografia, e lá fui eu!

Mais uma vez, apesar de adorar fotografar, achei que era muita pretensão a minha fazer um curso de fotografia. Mesmo assim, fiz com a cara e a coragem e, no final de 2011, ganhei uma linda Nikon de presente de Natal. E ela se tornou uma grande companheira de “aventuras”.

A fotografia se tornou um hobby para mim, o meu momento de descanso.

 

E onde entra Ouro Preto?

 

Até os nove anos, morei numa vila de mineração, pertinho da cidade de Mariana, no interior de Minas. Para chegar lá, passávamos por dentro de Ouro Preto. Eu ficava doida para descer do carro e passear por aquela cidade tão misteriosa.

Mas, infelizmente, por conta dos meus problemas de saúde na primeira infância, minha mãe nunca conseguiu passear conosco pela cidade, pois eu estava sempre hospitalizada ou imobilizada, sem ter como passear.

Me lembro que, todas as vezes que passávamos por Ouro Preto, ao som do “14 BIS”, eu olhava pela janela do carro para aquela praça e pensava “Um dia, eu vou conseguir passear por aqui!”.

Muito tempo passou até conseguir realizar essa proeza.

Que ironia! Quem conhece a minha história deve estar aí pensando: como foi possível ela se apaixonar justamente por uma cidade tão complicada pra andar, com aquelas ladeiras terríveis, que não oferece nenhuma acessibilidade? Afe! Pois é!

Mas acreditem! Eu consegui.

 

Carol [à direita] em Ouro Preto

Eu consegui!

 

De 2002 até 2019, passei por uma fase de maior independência. E claro que aproveitei essa oportunidade para realizar um dos meus sonhos, que era conhecer Ouro Preto.

Sempre foi um grande desafio subir e descer aquelas ladeiras. E acho que não teria conseguido sem ter, comigo, amigos e parentes que, com toda a paciência do mundo, andavam no meu ritmo, no meu passo e compasso tão lento e cuidadoso.

Sempre que podia e surgia um convite, lá ia eu fotografar Ouro Preto.

Entre um passeio aqui, e outro ali, entre um “click” aqui e outro ali, acontecia uma pausa para o café, pra respirar, tomar fôlego, prosear e recarregar as energias pra continuar.

Mas, sempre que íamos para algum lugar mais “distante”, ao contrário dos meus amigos e familiares, que podiam e conseguiam se deslocar a pé, eu tinha que pegar um táxi pra conseguir chegar.

Então, não preciso nem dizer que, para mim, todo o qualquer passeio pela cidade acabava sendo também muito caro financeiramente.

 

Alegria e frustração

 

Em Ouro Preto eu ri, me diverti, me emocionei, fiz grandes amizades.

Voltei diversas vezes, em diferentes momentos e épocas. Até 2019.

Por isso, quando vejo  minhas fotos de lá, sinto uma alegria tão grande por ter conseguido registrar com a câmera o que, antes, só via na minha imaginação e no meu coração.

Fico triste e frustrada por perceber que, talvez, nunca mais consiga ir lá novamente, ou em outra cidade histórica, visto que a acessibilidade continua tão precária quanto antigamente.

Aliás, se analisarmos de perto, é nula. Zero! É muito triste isso.

Sempre tive consciência de que tinha que aproveitar ao máximo, enquanto conseguia, porque, um dia, não seria mais possível.

Infelizmente, assim como Ouro Preto, as cidades históricas brasileiras nunca me ofereceram condições de aproveitar como todo mundo. Aliás, as nossas cidades precisam melhorar muiiiitooo ainda.

 

Uma queda = uma fratura

 

Para mim, sempre foi um perrengue gigantesco andar em qualquer cidade. Mas, em Ouro Preto, era uma mistura de sentimentos: pânico, pelo risco de cair naquelas ladeiras, e vitória, por conseguir sobreviver a um dia de passeio pela cidade, como qualquer outra pessoa.

A minha sensação era a de andar com uma arma apontada pra minha cabeça: qualquer passo em falso, ou descuido, eu levaria um tiro. E uma queda poderia significar não apenas mais uma fratura, mas algo muito pior no meu caso, visto a minha fragilidade óssea.

E mesmo assim, lá estava eu desafiando o destino e o perigo, apenas para poder ter a chance de fazer algo que parece ser tão comum para muitas pessoas: andar.

 

Fora do baile

Para poder curtir a cidade como todo mundo, eu é que tinha que me virar e me encaixar nos padrões. Se não, sempre ficaria de fora do baile.

E eu também queria me sentir pertencente. Queria me sentir “normal”.

Por isso, cada vez que voltava inteira pra casa, era com uma sensação de vitória. De que tinha conseguido! Aliás, esse sentimento de conquista vale para todos os lugares em que já fui e que fotografei.

 

Meu último passeio

 

Morro de saudades de fotografar a cidade que, nos meses do outono e do inverno, é contemplada com um céu azul lindo, um sol dourado batendo nos telhados e aquele friozinho básico que ajuda tanto na caminhada.

A última vez que estive em Ouro Preto foi em julho de 2019.

Senti um cansaço imenso nas pernas. E a minha intuição me dizendo que aquele seria o meu último passeio por lá.

Não deu outra. Em setembro de 2019, quebrei o fêmur direito. Uma fratura terrível da qual, infelizmente, não consegui me recuperar totalmente.

Quando estava em processo de recuperação, chegou a pandemia, em março de 2020. E aí, no início de 2022, fiquei sabendo que teria que passar por outra grande cirurgia, por conta de um problema sério na tíbia esquerda que já se arrastava há anos.

Em fevereiro de 2024 enfrentei a  15ª cirurgia ortopédica e sigo em recuperação. Estou de cadeira de rodas e no processo de passar para o andador de rodinhas.

 

Carol com as amigas em Ouro Preto

 

Ouro Preto e as impossibilidades

 

Na ausência de acessibilidade, as cidades são como prisões [Foto de Ouro Preto por Carolina Franco]

Em maio de 2024, uma amiga cadeirante veio de São Paulo para conhecer Inhotim e também tinha muita vontade de conhecer Ouro Preto.

Daí, me perguntou se eu conhecia algum hotel ou pousada que tivesse acessibilidade. Não consegui pensar em absolutamente nenhum lugar.  Todos os lugares que eu conhecia, ou onde já tinha ficado, não ofereciam nenhuma acessibilidade.

Mesmo assim, entrei na internet e fui pesquisar. Quem sabe depois de tanto tempo não seria surpreendida com alguma novidade acessível? Esperança é a última que morre, né?

Entretanto, as pousadas com as quais eu havia entrado em contato não tinham absolutamente nenhuma acessibilidade. A única que encontrei, que tinha alguma acessibilidade, era longe [do centro histórico].

E aí, eu te pergunto: do que adianta um museu passar por uma grande reforma para ter acessibilidade se um turista cadeirante não encontra uma pousada para se hospedar, se não consegue encontrar um restaurante que tenha acessibilidade, para fazer uma refeição? Se ele não consegue fazer um simples trajeto em segurança do estacionamento até o local que deseja visitar?

Quando a gente encontra alguma coisa, não tem o poder de escolher. É o que tem. E sempre é mais caro.

Tudo é mais complicado. Os deslocamentos são mais difíceis, o planejamento de uma viagem é muito mais desgastante do que para outras pessoas.

 

Não posso conhecer meu próprio país

 

Gente: acessibilidade é muito mais do que  colocar uma rampinha mequetrefe na calçada.

Para ser verdadeiramente acessível, um lugar precisa oferecer pelo menos o mínimo de conforto, autonomia e segurança.

Eu queria muito poder passar um final de semana em Ouro Preto, ou Mariana, ou em Tiradentes, ou em qualquer outra cidade histórica. Mas aparece a dúvida: que estrutura a cidade oferece para alguém que esteja de cadeira de rodas ou que tenha mobilidade reduzida?

 

Bom para todo mundo

 

Continuamos na luta por cidades acessíveis

Sempre falo que acessibilidade é bom pra todo mundo. Em qualquer momento da vida.

É bom para uma mãe que tem que empurrar um carrinho de bebê, é bom para quem está carregando um carrinho de compras, para a criança que está indo para a escola puxando sua mochila de rodinhas, é bom para quem tem dificuldade para andar.

Enfim, estamos todos sujeitos a precisar de algum recurso de acessibilidade, em virtude de um tropeção, um mal jeito, um problema de saúde e por aí vai.

Imagina que maravilha seria se a gente não tivesse que mudar a nossa vida, em decorrência desses obstáculos que nos são impostos pela falta de estrutura urbana e pela falta de acessibilidade?

Se a cidade tivesse o mínimo de acessibilidade, com certeza eu já estaria dando um jeito de ir pra lá.

Como isso é possível até hoje? Tantos lugares incríveis para conhecer, mas que não oferecem o mínimo de condições, por falta de acessibilidade?

Como disse essa minha amiga, “é muito frustrante você não conseguir, não poder conhecer o seu próprio país”.

 

Para saber mais:

 

♥ A acessibilidade em centros históricos de cidades mineiras | Reportagem

 

Ela trata da adequação dos centros urbanos turísticos, de modo a garantir acessibilidade para diversos públicos. Filmada em Ouro Preto, a reportagem se baseia no livro Ouro Preto e o Futuro, que une arte e pesquisa sobre o tema, para propor transformações inclusivas na cidade.

 

 

About Carolina Franco

Carolina Franco tem uma doença genética, rara, chamada Osteogênesis Imperfecta. Mais conhecida como a "Doença dos Ossos de Vidro”, possui 4 classificações na literatura médica, sendo a da Carol do tipo 4. Mineira de Belo Horizonte, pisciana, Carolina trabalha, estuda, cozinha, fotografa, escreve, viaja, nada, sonha, costura e vive com suas limitações sem deixar de aproveitar as belezas da vida. Tem vasta experiência com fraturas, internações, gessos, cirurgias ortopédicas, fisioterapia, cadeira de rodas, muletas, bengala e andadores. É formada em Marketing com especialização em Gestão Estratégica pela Fundação Dom Cabral e em Planejamento e Gestão Cultural pela PUC Minas. Representa a quarta geração de uma tradicional empresa mineira no setor de modelagem do vestuário. Para falar com ela: carolina.tmf@gmail.com

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