Jairo Marques é repórter da Folha de S. Paulo, além de professor universitário e criador do blog Assim como Você, que é hospedado pela própria Folha. Ele é pessoa com deficiência, assim como nós, mais especificamente cadeirante, em razão de ter contraído poliomielite na infância.
Jairo ficou conhecido por seu bom humor, seu jeito leve e engraçado de contar “causos”, mas também por não ter medo de tratar de assuntos espinhosos, muitas vezes evitados pela mídia e pelo próprio segmento das pessoas com deficiência.
Criatividade e inconformismo
Sua criatividade e seu inconformismo o levam a confrontar o estabelecido e criar neologismos, muitas vezes engraçados, outras vezes polêmicos. Já chegou a chamar as pessoas com deficiência de “matrixianas” e também de “malacabadas”.
Como se vê, ele abre mão do politicamente correto quando engessa a reflexão. Mais que isso, tem nos mostrado que é possível rir de nós mesmos, não de forma desrespeitosa com os desafios que enfrentamos ou com a pessoa que somos, mas encarando situações estressantes com bom humor.
O bom humor torna os problemas mais suportáveis, evita que tenhamos fantasias de superioridade ou de ser os donos da verdade e também nos possibilita exercitar a autocrítica.
Eu gosto desse seu jeito que desperta polêmicas, num mundo em que as pessoas não conseguem rir de si mesmas e que o politicamente correto se transformou em mais um fundamentalismo ou numa camisa de força. As pessoas parecem não querer admitir o contraditório ou aceitar posicionamentos diferentes.
Por tudo isso, é preciso dar voz a Jairo Marques, não que ele já não tenha, para que possamos dar conta de colocar o dedo nas nossas feridas e para ajudar o público a compreender, sem pieguismos, o universo da pessoa com deficiência.
Primeiro livro!
No dia 23 de agosto, Jairo lança seu primeiro livro, Malacabado, em Belo Horizonte, no auditório do BDMG. É uma honra recebê-lo aqui, e uma satisfação muito grande poder entrevistá-lo para o Cadeira Voadora.
Se você é daqueles que não concorda com os pontos de vista do nosso entrevistado, que problema há nisso? Ora, numa sociedade democrática, é preciso dar espaço para conhecer a argumentação de outra pessoa, ainda mais quando é procedente.
Mas vamos deixar de blá-blá-blá e ouvir Jairo Marques? Agora, a palavra é dele!
“Geralmente, quando a pessoa consegue encarar com bom humor alguma característica ou condição que antes era encarada como um problema, mostra que ela aceitou e está de bem com o que já foi capaz de causar sofrimento em algum momento de sua vida.”
Monica Portella, mestra em psicologia social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Entrevista | Jairo Marques
Cadeira Voadora | Quando foi que você iniciou seu blog e qual foi a motivação?
Jairo Marques | Comecei em 2008, quando a Folha iniciou a abertura desse tipo de plataforma. Fui um dos primeiros blogueiros e, logo no início, consegui muita repercussão e apoio. A motivação inicial foram os perrengues, muitos deles engraçados, de minha própria vida. Como cadeirante, passo por 90% das situações que relato, que reclamo, que mostro ao público. Depois, fui me engajando mais com o coletivo das pessoas com deficiência e ganhando notoriedade, o que gerou muitos novos incentivos para continuar o trabalho.
Em pouco tempo você conseguiu reunir em torno do blog um grande e variado público, com os mais diversos tipos de deficiência. Sempre percebi a empatia de seu público com as histórias que você contava e conta. A que fatores atribui esse sucesso, essa empatia?
Avalio como principais dois elementos: carrego meus textos com uma verdade pouco conhecida, mas muito vivida por milhares de pessoas. O segundo ponto é que considero o meu trabalho colaborativo. Eu me pauto pelo retorno dos leitores, respeito cada um deles, dou satisfação, informação e faço reverência. Tenho um espaço preciso que foi aumentando graças à repercussão positiva. Isso não quer dizer que eu me ausente de polêmicas ou que eu não defenda pontos de vistas que não levam vaias. Ser original, comprometido e contemporâneo também são características que prezo muito.
É fundamental mudar o contexto de debate sobre a pessoa com deficiência no Brasil, estacionado há anos num discurso assistencialista, de dó, de coitadismo. Esses elementos atravancam a imagem de cadeirantes, cegos, surdos, paralisados cerebrais, downs etc. em uma realidade sem cidadania, sem direito a palavra, sem representação, apenas com uma aura de pessoas boazinhas.
Controvérsias
Você não tem medo de tocar em questões controvertidas que envolvem o contexto da pessoa com deficiência. Por isso, acabou atraindo o ódio de muitos, o que infelizmente tem acontecido com alguma frequência no Brasil, e não só com você. Como tem lidado com essa situação?
É fundamental mudar o contexto de debate sobre a pessoa com deficiência no Brasil, estacionado há anos num discurso assistencialista, de dó, de coitadismo. Esses elementos atravancam a imagem de cadeirantes, cegos, surdos, paralisados cerebrais, downs etc. em uma realidade sem cidadania, sem direito a palavra, sem representação, apenas com uma aura de pessoas boazinhas.
Estou completamente comprometido em tentar ajudar a construir uma nova identidade para o “nosso povo” no Brasil. Isso passa necessariamente por gerar conflito, por receber pedradas, por ser tido como alguém execrável. kkkkkkkk
Isso não me abala porque tenho respaldo de uma gama enorme de leitores igualmente comprometidos. Tenho também, por enquanto, apoio institucional muito forte. Claro que não é gostoso ser xingado por suas convicções, mas, se eu sempre conseguisse unanimidade, algo muito errado haveria com meu discurso.
Politicamente careta
Desde o início você mostrou que não bate continência para o “politicamente correto”. Criou termos irônicos e engraçados, mas que provocaram a ira de muita gente, com deficiência ou não, e um deles virou título de seu livro: Malacabado. O Jairo é “politicamente incorreto”? Como você enxerga a patrulha aos neologismos que povoam seus textos?
Sou repórter do maior jornal do país e, por essa razão, não posso me portar contra movimentos que desejam ser representados assim ou assado.
Em minhas funções voltadas ao texto informativo, sigo o padrão social. Quando estou nas plataformas mais íntimas, adoto a piada, a controvérsia, a graça. Isso me ajuda a ganhar empatia com novos públicos, quebra uma barreira que ainda persiste em assuntos voltados à inclusão, à diversidade.
Mas pontuo que minhas provocações não visam ofender ninguém, elas querem fomentar uma reflexão. Enquanto parte da sociedade trata a pessoa com deficiência falsamente como especial, como ser digno de boa-vontade, ao mesmo tempo ela golpeia esse público com a falta de oportunidades iguais, com desleixo ao respeito às leis que nos abraçam, negam acesso ao trabalho, ao emprego. “Malacabado” é um neologismo que busca, ao mesmo tempo, fazer uma graça como provocar um certo incômodo. O que não pode é tudo ficar na mesma, estacionado na exclusão.
Pena? Tô fora.
Seus textos, mesmo quando tocam em feridas, são leves e muitas vezes bem-humorados. Você mostra claramente que não veio em nome do vitimismo, de reforçar a peninha que as pessoas sentem da pessoa com deficiência, e muito menos de colaborar com a cultura do capacitismo. A que você veio, Jairo?
Desde menino, sou um inquieto. A minha visível imobilidade não é minha identidade, não é meu DNA. Quero ser um cidadão pleno, que é visto por suas capacidades, seus talentos. Sei das minhas responsabilidades como “representante” de um grupo imenso de pessoas devido a minha notoriedade e devido ao espaço que tenho na grande imprensa.
Ser um tradutor fiel de demandas é muito difícil, mas procuro manter meus termômetros bem ajustados. O que me garante que estou no caminho certo, pelo menos em boa parte das vezes, é o avanço. O livro tem sido um sucesso, minhas colunas têm boa repercussão, e o blog segue vivo. Isso é muito gratificante, e não por uma situação particular, mas porque levo um montão de gente na cachola.
Encontro com a diversidade
Poderia apresentar seu livro para o leitor e convidá-lo a estar conosco no lançamento, em BH?
Malacabado é um relato, um grito, um chamado para um olhar diferente para as diferenças.
A partir de várias experiências de minha vida, profissionais, amorosas, sociais, tento discutir os desafios de estar vivo em uma cadeira de rodas, de resistir à pressão da exclusão, de ter de passar óleo de peroba na cara para conseguir seguir em frente. Penso que o leitor, muitas vezes durante a obra, vai conseguir fazer uma análise sobre si mesmo diante do encontro com a diversidade.
A minha palestra em BH, o que muito me orgulha, vai igualmente falar sobre olhares, sobre uma necessária mudança de perspectiva para que a realidade de milhares de pessoas seja melhor. Aguardo vocês lá!
Para saber mais
Reportagem sobre Jairo no blog Lombada Quadrada
Reportagem sobre o lançamento de Malacabado
Enquanto parte da sociedade trata a pessoa com deficiência falsamente como especial, como ser digno de boa-vontade, ao mesmo tempo ela golpeia esse público com a falta de oportunidades iguais, com desleixo ao respeito às leis que nos abraçam, negam acesso ao trabalho, ao emprego.