Com sensibilidade, o filme “37 Segundos”, da diretora japonesa Hikari, mostra a jornada de uma jovem com deficiência em busca da autodescoberta, da autoexpressão e da autoafirmação.
Sem deixar de mostrar as tribulações enfrentadas pela personagem, mas sem recorrer a clichês, a diretora nos entrega um excelente filme. Os detalhes você confere aqui e fica sabendo por que ele foi tão bem recebido pelo público e pela crítica.
{Texto publicado em 2/8/2021 e editado em 23/5/2022}
Um tema delicado
Por causa da sensibilidade da diretora, assim como do talento da atriz Meia Kayama, que interpreta a protagonista, é possível vermos, neste filme, assuntos delicados tratados de forma respeitosa.
Tudo isso, felizmente, sem resvalar para o emocionalismo, o vitimismo ou a exaltação da superação, que têm sido abordagens comuns – e simplistas – em filmes sobre pessoas com deficiência.
Processo de empoderamento
Ao longo da narrativa, a moça tímida e insegura vai dando lugar a uma mulher que sabe o que quer e busca realizar seus desejos.
Sem transferir responsabilidades, a personagem vai optar por encarar suas dores emocionais, que dizem respeito à falta de autonomia e ao preconceito que enfrenta por ser uma pessoa “diferente”.
Mas ela faz o que está a seu alcance para construir sua liberdade e buscar um lugar na sociedade. Para isso, utiliza seus talentos como desenhista de mangás.
Assuntos como família, inclusão e sexualidade vão desfilar na nossa frente, sempre de forma leve, responsável, cuidadosa e até com leve humor, ainda que as situações possam ser bastante pesadas.
Japão sem barreiras arquitetônicas, mas com preconceito
A personagem Yuma Takada é interpretada pela atriz Mei Kayama, que de fato é uma pessoa com deficiência, usuária de cadeira de rodas, em razão de paralisia cerebral.
Sua interpretação é tão natural, que fica a impressão de estar diante de uma história real, embora esta seja uma obra de ficção.
Ambas, personagem e atriz, têm uma deficiência causada por paralisia cerebral. No filme, é a própria Yuma quem conta que as sequelas se devem ao fato de ter ficado 37 segundos sem respirar após ter nascido.
Como Yuma vive em Tóquio, as imagens nos deixam perceber uma cidade que deu atenção à remoção de barreiras arquitetônicas.
Sendo assim, ela vai à escola e ao trabalho com independência, em sua cadeira motorizada. Pega ônibus e metrô e anda pelas ruas sem dificuldades.
Mas, nesta mesma sociedade, observamos a presença do preconceito quando a jovem decide se abrir a um relacionamento amoroso. O mesmo acontece quando, diante do insucesso dessa empreitada, decide buscar um relacionamento sexual em uma casa de prostituição.
Autonomia X independência
Este contexto nos leva a reflexões importantes, pois tendemos a achar que a autonomia precisa da acessibilidade para acontecer, mas não é bem assim.
Yuma tem independência, no sentido de que consegue se locomover e cuidar da própria vida sozinha, e até mesmo ganhar dinheiro. Entretanto, ainda vai precisar aprender a fazer escolhas, tomar decisões, incluindo como lidar com os preconceitos e buscar a própria satisfação. Ou seja, ela aprenderá autonomia.
Desejo sexual tratado com realismo
Sem dúvida, o despertar de Yuma para a vivência da sexualidade é tratado sem encobrir as dificuldades que ela enfrenta.
Assim, a frustração da personagem diante das tentativas de ter um relacionamento não é encoberta, nem as soluções que ela vai encontrando para viver essa necessidade.
Ao mesmo tempo em que o filme mostra Yuma buscando alternativas para lidar com o desejo e a curiosidade sexual, expõe a realidade nua e crua do preconceito e da falta de acesso aos serviços sexuais.
“Foram 37 segundos… O tempo em que fiquei sem respirar após nascer. Seu eu tivesse nascido primeiro, Yuka [a irmã gêmea] poderia ser como eu. Se eu começasse a respirar um segundo antes, talvez eu fosse igualzinha a ela. Seria livre como ela. Mas ainda bem que fui eu.” (Yuma)
Relacionamento entre mãe e filha
Chama a atenção, no filme, o relacionamento entre Yuma e a mãe, que cerca a filha de cuidados excessivos, principalmente se tivermos em vista que moram em uma cidade segura e tecnológica. Dessa forma, não cabe a justificativa de que a moça precisa de proteção ou ajuda.
Porém, ela enreda a garota em uma teia protetora e invasiva, que inclui dar banho e trocar a roupa, de forma que esta não tem espaço para tomar decisões nem para crescer.
Além disso, vale notar que Yuma também tem seu crescimento tolhido no trabalho. Exímia desenhista de mangás, ela é explorada pela jovem prima Sayaka, que recebe todos os créditos pelo trabalho.
Quebra de estereótipos
Uma das facetas de que mais gostei no filme foi o fato de quebrar estereótipos, entre os quais o de mostrar os personagens com deficiência como exemplos de superação ou vítimas da sociedade.
Em “37 Segundos”, deficiência ocupa o lugar que deve, ou seja, é apenas uma das características de Yuma.
E, em uma época em que são comuns personagens rasas, Yuma tem personalidade complexa, que foge a reduções simplistas.
A princípio vulnerável e insegura, desabrocha como uma moça lúcida, sensível e forte, que enfrenta os desafios com serenidade, resiliência e ousadia.
Como qualquer pessoa
Os desafios que Yuma enfrenta são comuns a muitas pessoas, embora, no seu caso, sejam acentuados pelo capacitismo (o preconceito contra as pessoas com deficiência).
Na verdade, o preconceito parte tanto da mãe, que não enxerga nela condições de ser independente e autônoma, quanto dos possíveis parceiros afetivos, que se mostram incapazes de superar o próprio estranhamento diante de uma moça que eles não entendem como “funciona”.
Por fim, observamos como a própria sociedade impõe barreiras de acesso a trabalho.
Adeus às ilusões
Para a alegria do espectador, a carismática Yuma não teme enfrentar os próprios sentimentos, e nós vamos enfrentando-os com ela, um a um. Não dá pra sermos ingênuos: os dela são também os nossos.
E é assim que, naquela sociedade tão avançada, vamos experimentando, com dor, Yuma ser desconsiderada, rejeitada, passando como invisível.
Mas também vamos acompanhando a garota batalhando por seu lugar na família, no coração das pessoas e no mundo profissional.
Virou um dramalhão?
Penso que não seria exagerado dizer que não saímos os mesmos dessa experiência. É muito impacto, e a narrativa só não cai no dramalhão por conta da delicadeza e inteligência da diretora e da interpretação habilidosa da atriz.
Os diálogos são excelentes, assim como as imagens, então não deixe passar nada, porque é um filme precioso!
Confira o trailer abaixo!
Como diretora, quero tornar este mundo um lugar melhor com o meu trabalho. Tudo o que eu quero colocar em minhas mãos tem que ter um significado. ” Hikari (Citação extraída deste artigo)
Para saber mais:
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♥ Sobre “37 Segundos”:
“37 segundos” é uma história verdadeira?
“37 segundos” no IMDB (pontuação, fotos, etc)
Confira o trailer!