“Tá reclamando de que mesmo?”

 

Não me parece que esta criança seja digna de dó. Porém, esta imagem é uma das usadas para despertar comoção…

 

Se tem algo que me incomoda e aborrece profundamente são aqueles vídeos ou imagens mostrando pessoas com deficiência (grande parte das vezes com malformações ou amputações) fazendo alguma coisa supostamente muito difícil, que surpreenda e emocione pessoas desavisadas.

Digo “supostamente” porque nada, nos vídeos e fotos, dá a entender que elas estejam numa luta terrível ou sejam infelizes. Isso faz parte do cotidiano dessas pessoas; no meu modo de ver, não é nada que deveria estar sendo usado para tirar lágrimas dos outros.

Vou me limitar a postar uma foto (acima), e nenhum vídeo, porque os que tenho visto são mesmo exploração da imagem alheia. Prefiro não reproduzir.

 

“Tá reclamando de que mesmo?”

 

Aí, a pessoa compartilha o post com a seguinte frase: “Qual era mesmo o seu problema?” ou “Tá reclamando de que mesmo?”

Ora, tem muita gente que de fato adora se fazer de vítima e fica se lamentando por um fio de cabelo branco. E há outras pessoas que simplesmente não conseguem valorizar o que alcançaram na vida.

Mas penso que é um abuso utilizar imagens de pessoas com deficiência (ou de pessoas com alto grau de desnutrição, ou miseráveis) para explorar a comoção alheia. As pessoas continuam fazendo esse tipo de postagem possivelmente porque comover o público e fazê-lo chorar diante de “histórias de superação” ou de “desgraças” produz MUITA audiência e gera muitos “likes”.

Quais são os comentários comuns em tais postagens? São coisas do tipo: “Parabéns, guerreiro (a)”; “Com tanta desgraça ainda consegue se superar”; “Deus te abençoe”; “Confie em Deus; um dia Ele vai te curar”.

 

A vida não é fácil pra ninguém

 

Quando adquiri a deficiência, eu usava órtese e muletas canadenses (distribuídos gratuitamente pelo INPS) para ir à escola e para sair, mas não conseguia ficar com eles o dia todo, porque minhas pernas e mãos ficavam feridas.

Então, em casa eu engatinhava, já que não tínhamos dinheiro para comprar cadeira de rodas, e o governo não fazia distribuição gratuita, ao contrário do que ocorre hoje.

Graças a Deus, minha família nunca achou que eu era “guerreira” ou que estava fazendo algo que deveria ser mostrado na TV. Era tudo muito natural. Engatinhar era só o meu jeito de andar.

Esta garotinha sou eu, entre dois dos meus irmãos. Na época, eu usava aparelhos ortopédicos. As muletas canadenses não saíram na foto.

 

Após 30 anos de trabalho remunerado, não enfrento mais dificuldades com locomoção*, porque tenho os equipamentos de que necessito. Mas, quando vou à casa da minha mãe, e preciso utilizar o banheiro, tenho que improvisar, e então uso um banquinho e “ando” com ele, como a moça que aparece em um desses vídeos compartilhados para nos emocionar. Faço isso porque a cadeira de rodas não entra no banheiro da casa dela. Passo da minha cadeira para o banquinho, saio “andando” com ele até alcançar o vaso sanitário. E não fico infeliz por causa disso, não me considero exemplo de superação e nem motivo para os outros chorarem.

Acredite ou não, me sinto apenas criativa para fazer xixi (aliás, me sentia, porque agora já sei que outros fazem o mesmo 😉 ). E também um pouco aborrecida porque minha mãe até hoje não tornou aquele banheiro acessível… Só Jesus na causa

*Na verdade, não estão incluídas aí as dificuldades de utilizar as calçadas de Belo Horizonte, cidade onde moro. Caso um extraterrestre aportasse por aqui, sem antes se informar a respeito, pensaria que passamos por uma guerra recente, e as calçadas foram bombardeadas.

 

Não julgar é um bom conselho

 

Muitos de nós passamos por desafios incríveis. E quem sabe isso aconteça, de fato, com quase todos nós? Somente a própria pessoa tem como avaliar a extensão da sua dor.

Por isso, é melhor não comparar. A pergunta “Tá reclamando de que mesmo?” pressupõe que o desafio do outro é menor.

Não podemos julgar qual é o tamanho do desafio do outro só pelo que estamos enxergando. Pode ser que os invisíveis aos nossos olhos sejam os maiores, concorda? Muitas dores vão para o túmulo junto com a pessoa, porque ela nunca se sentiu segura para compartilhar.

Sabe, eu tenho um sonho: um mundo em que as pessoas consigam enxergar além do olhar. Um mundo em que as pessoas encontrem espaço para expressar sua dor, encontrar compaixão, cuidado e atenção. Um mundo em que as pessoas sejam respeitadas independentemente da natureza do seu sofrimento.

Que cada um de nós possa colocar sua semente neste canteiro.

 

Foi pela boca do Pequeno Príncipe que o aviador Antoine de Saint-Exupéry disse: “Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.”

 

 

About Laura Martins

Laura Martins criou o blog Cadeira Voadora em 2011 para compartilhar suas experiências de viagem em cadeira de rodas. Para ela, viajar desenvolve inúmeras habilidades, nos faz menos intolerantes por conviver com as diferenças e ajuda a construir inclusão, porque as cidades vão ficando mais preparadas à medida que as pessoas vão se fazendo visíveis. Entre em contato pelo e-mail contato@lauramartins.net.

2 Comments

  1. Lindo texto, Laura! Concordo em tudo.

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