Hoje o post é da amiga Lia Crespo, que conta, de um jeito literário e deliciosamente divertido, sua passagem por Paris, com as amigas Elza Ambrosio e Crismere Gadelha. Certamente, com direito a desventuras, mas não em série!
O Cadeira Voadora, que tem outros posts sobre a cidade, acredita que vale muito a pena mostrar diferentes experiências e perspectivas, a fim de que o leitor tenha uma visão mais abrangente dos locais. Então, vamos conferir?
Ah! Ainda que você não acredite, esta é uma história real. Aconteceu MESMO.
[Todas as fotos pertencem ao acervo de Lia Crespo]
“Je suis désolé”*
Sempre ouvira dizer que os franceses eram grosseiros e que tratavam muito mal os turistas. Um amigo se queixara de falhas na acessibilidade da cidade e da falta de solidariedade dos parisienses. Ninguém se ofereceu para ajudá-lo diante de um degrau intransponível para sua cadeira de rodas, e fora ignorado quando pediu ajuda.
Por causa desse e outros relatos semelhantes, a Cidade-Luz não estava entre as cidades que ela sonhava conhecer um dia. Além disso, seu francês se reduzia a meia dúzia de palavras. Mas a oportunidade surgiu, e como dizer não a Paris?
Nota da Cadeira Voadora:
*Je suis désolé: expressão francesa que significa sinto muito, lamento, me desculpe. No feminino: Je suis désolée.
Voo São Paulo-Paris
Depois de duas horas de voo, um comissário de bordo declarou aos passageiros: “Je suis désolé, mas o Brasil perdeu de 7 a 1 para a Alemanha. Foi como um pesadelo.”
Ninguém entendeu. Como assim, perdeu? Como assim, 7 a 1? Esse foi o presságio de que aquelas 11 horas de voo seriam intermináveis.
Je suis désolé. Ela não sabia, mas ouviria essa expressão muitas vezes durante aquela viagem, e nem todas por causa do fatídico jogo.
Quando aquele legítimo casal representante da “elite branca” descrita pelo Lula finalmente se calou, com o apagar das luzes de bordo, ela pôde se concentrar na angustiante tarefa de observar, no monitor de TV, o trajeto do aviãozinho singrando lentamente o nada.
Imaginar-se sobre o Atlântico revelou-se uma aflição só mitigada pela farta distribuição grátis de champanhe e chocolatinhos. Enfim, contra as expectativas, ela sobreviveu à infindável noite.
Passeando pelas ruas de Paris
Evidentemente, Paris é maravilhosa! Repleta de ruazinhas encantadoras. Os prédios baixos nunca impedem a visão do céu azul, e quase todos têm varandinhas com flores. As bancas de frutas se espraiam em calçadas largas, inebriando o transeunte com sua miríade de cores, abastança de formas e profusão de perfumes (Ah, os morangos parisienses…).
Praticamente plana, ao contrário da experiência relatada por seu amigo, ela descobriu que Paris é perfeita para se andar a pé ou, no caso, rodar num triciclo vermelho motorizado.
Habituada ao ziguezague obrigatório em busca das entradas de garagens, para substituir as intermitentes guias rebaixadas de São Paulo, ela se sentia nas nuvens navegando pelas calçadas parisienses, todas perfeitas como pisos de shopping center e com guias rebaixadas irretocáveis em cada esquina. Ah! Era o céu. “Je vois la vie en rose”, ela cantaria, se não fosse totalmente desafinada.
Aos pés da Torre Eiffel
Finalmente, o verão parisiense tinha dado as caras! No 14 de julho, dia da Queda da Bastilha, a chuva, a garoa e o vento cortante dos primeiros dias foram substituídos por uma manhã ensolarada.
As três amigas ficaram exultantes pela oportunidade de celebrar o mítico feriado nacional, em Paris, assistindo ao vivo ao show noturno e à queima de fogos, aos pés da não menos emblemática Torre Eiffel.
Aquela manhã gloriosa só poderia prenunciar um dia inesquecível! Naturalmente, isso pedia um almoço em meio às árvores, no jardim do Louvre, observando turistas languidamente estirados pela grama, crianças correndo em rodopio com seus coloridos balões de gás.
Ela não ficou surpresa quando o Pequeno Príncipe se aproximou atraído pelo triciclo vermelho e balbuciou alguma coisa incompreensível para ela.
Encantada, só soube sorrir para garotinho de cabelos dourados como uma plantação de trigo ao sol. O momento mágico foi quebrado pela mãe do menino, que, ao buscá-lo, disse-lhe algo baixinho. O príncipe sorriu e se afastou acenando um adeusinho.
Uma figura meio bizarra
Depois do sorvete, as três amigas atravessaram calmamente o longo jardim até a Praça da Concórdia e seguiram o passeio margeando o Sena.
No caminho para a torre, encontram uma exposição de tanques e outros veículos de guerra. Ela preferiu estacionar e esperar, enquanto as amigas exploravam os equipamentos bélicos.
Com seu capacete Petzl azul-cobalto e o triciclo vermelho, ela fazia uma figura meio bizarra, em meio ao colorido vai e vem de turistas e rapazes uniformizados.
Mais ainda quando, para se proteger do sol escaldante, ela abriu a sombrinha comprada no dia anterior – e que sempre a faria lembrar-se daquela rápida chuva de verão, nas proximidades da Notre-Dame -, quando sentiu o delicioso perfume das castanheiras.
Imediatamente, soube que era a exata sensação que Audrey Hepburn descreveu para Humphrey Bogart, em Sabrina, filme de 1954, dirigido por Billy Wilder.
Acessibilidade no transporte público
Ao se aproximar da Torre Eiffel, as amigas constataram que pelo menos metade de Paris tinha tido a mesma ideia. Centenas, senão milhares de pessoas ocupavam cada centímetro do jardim, surpreendentemente, cheio de tufos de mato alto. Famílias inteiras, com jovens, velhos e crianças aproveitavam o piquenique.
Provavelmente, tinham chegado cedo para garantir os melhores lugares para apreciar as festividades. Ouvia-se uma dezena de línguas diferentes nessa moderna babel.
Previdentes, as amigas tinham estudado cuidadosamente os mapas para localizar o ponto do ônibus acessível mais próximo, de modo a garantir a volta segura ao hotel. Uma delas até deu uma de “batedor”, indo conferir o trajeto in loco.
Embora o metrô, muito antigo, tenha poucas estações acessíveis, cadeirantes usam ônibus facilmente em Paris, basta decifrar os mapas. Se fizer a lição de casa corretamente, sempre haverá um ônibus acessível para onde você quer ir. Ou quase.
Celebrando o 14 de julho
Perde-se a noção do tempo, no horário de verão parisiense.
O sol parecia ter acabado de se pôr, as amigas pensavam ser 17 horas, mas não! Uma olhada no celular denunciou: passava das 22 horas quando começou o show de música aos pés da Eiffel.️
O Campo de Marte lotado de gente. Milhares de pessoas sentadas, deitadas, em pé, em cima das árvores, em toda parte. As amigas lutaram bravamente para alcançar um local relativamente seguro e com boa visão das imagens projetadas na torre, durante o show de música.
Local escolhido, pontos de referência determinados, uma das amigas, imbuída do espírito do “índio batedor”, corajosamente foi conferir in loco o ponto de ônibus acessível mais próximo, seguindo as pegadas assinaladas pelo mapa. Achar o objetivo não foi difícil. Voltar foi outra história. À noite, todos os pontos de referência são pardos.
Não fosse a luz do triciclo vermelho providencialmente acesa, tal qual um farol a indicar o porto seguro naquele mar de gente, não teria se safado dessa pequena aventura.
Cenas memoráveis
Definitivamente, celebrar o 14 de Julho, a Queda da Bastilha, aos pés da torre Eiffel, não é para todos. E, tendo consciência disso, as amigas desfrutavam cada instante desse privilégio.
Os fogos de artifício, dizia a propaganda, rivalizaria com o réveillon do Rio. Talvez, não. Mesmo assim, a visão da treliça da torre em contraste com as luzes espocando azul, vermelho e branco é uma daquelas cenas memoráveis para se guardar no coração.
Nada, no entanto, poderia ter preparado as amigas para a emoção de ouvir a multidão cantar a plenos pulmões:
“Allons enfants de la Patrie / Le jour de gloire est arrivé/Contre nous de la tyrannie / L’étendard sanglant est levé/L’étendard sanglant est levé/Entendez-vous dans les campagnes / Mugir ces féroces soldats! / Ils viennent jusque dans vos bras / Égorger vos fils et vos compagnes”. [Clique aqui para ouvir.]
A mítica Marselhesa.
Começam as desventuras
Pouco depois da meia noite, acabada a festa monumental, restava navegar muito lentamente pelo oceano de pessoas.
Depois de uns vinte minutos repetindo o mantra: “Excusez-moi, s’il vous plaît, merci beaucoup”, as amigas chegaram no ponto de ônibus acessível tão cuidadosamente pesquisado e escolhido. Só para descobrir que, em virtude do adiantado da hora, não haveria mais ônibus.
O triciclo vermelho não podia ser transportado em um táxi comum. Com 213 quilômetros de linhas e mais de 300 estações, o metrô parisiense funciona desde 1900 e, obviamente, não prima pela acessibilidade. E agora? O que fazer?
“O jeito é pedir ajuda à polícia”, concluíram as amigas. Com a cidade coalhada de policiais, não foi difícil encontrar uma viatura parada próxima à Ponte de l’Alma.
Apesar do seu inglês quebrado e do francês macarrônico, as amigas se fizeram entender, e os policiais – duas moças e dois rapazes uniformizados e com seus coletes à prova de balas – se puseram a trocar ideias pelo rádio da viatura.
Abandonadas à própria sorte
Alguém deu a ideia de chamar um táxi acessível. Aparentemente, naquele horário, não estavam mais disponíveis.
As amigas aguardavam as tratativas entre os policiais e seus interlocutores na central por cerca de 30 ou 40 minutos, quando, de repente, os quatro policiais entraram apressadamente na viatura. Uma das moças disse fazendo biquinho: “Je suis désolé. Nous devons aller. Au revoir.” Ou coisa que o valha.
As amigas se entreolharam incrédulas. Na madrugada parisiense, a polícia francesa havia abandonado à própria sorte três mulheres, uma delas deficiente usando um triciclo motorizado, três turistas estrangeiras que não dominavam a língua local, sem condições de transporte para voltar ao hotel a quilômetros de distância. Como assim?!
Diante do fato tão insólito quanto consumado, não restava alternativa às amigas. Era preciso ir andando.
Elas não estavam perdidas. Sabiam onde estavam e que direção tomar para chegar ao hotel. A rota menos propensa a erros, ainda que triplicasse a distância, era manter o rio Sena à direita e seguir em frente. Corajosamente.
Cadeirante na madrugada deserta de Paris
No início do trajeto, a cidade ainda fervilhava, escoando a multidão que havia participado das comemorações.
Aos poucos, as pessoas foram rareando. Nas ruas, apenas os trabalhadores da limpeza, um ou outro restaurante fechando as portas, três ou quatro jovens árabes, como aqueles que seguiam em direção a elas… ou a um dos muitos mapas luminosos que há pela cidade.
Depois de mais uma hora de caminhada em passo acelerado, não havia mais ninguém nas ruas de Paris, exceto as três amigas. E ainda havia 40 minutos, quem sabe mais uma hora de jornada.
O movimento repetitivo para acionar o motor do triciclo cobrou seu preço. Com a mão temporariamente paralisada, ela precisou de ajuda de uma das amigas para acionar o triciclo. As três estavam exaustas, mas parar e descansar não era uma opção na madrugada deserta de Paris. Era imperioso seguir inexoravelmente em frente.
Duas horas depois…
Aproximadamente duas horas e mais de 7 quilômetros depois, as amigas chegaram ao hotel.
Semimortas, exauridas, estafadas, esfalfadas, consumidas, quebradas, moídas, fatigadas, extenuadas, esgotadas, cansadas, acabadas, destruídas, mas sãs e salvas!
Então, moral da história: alguns policiais de São Paulo não são perfeitos. Muito pelo contrário! Alguns são capazes de roubar, matar e estuprar. Mas, sem sombra de dúvida, numa situação semelhante, jamais deixariam três mulheres estrangeiras, uma delas cadeirante, abandonadas na madrugada paulista, sem condições de voltar para casa. A Polícia Militar de São Paulo teria providenciado uma ambulância, os bombeiros, o camburão ou até o rabecão, mas teria encontrado uma solução para o problema.
Em favor de Paris, é preciso dizer que, além de linda, tem uma acessibilidade muito boa. Todo esse trajeto foi feito pela calçada, sem que fosse necessário andar em ziguezague pelas ruas procurando guias rebaixadas. É segura. As amigas não foram roubadas, nem estupradas. Tem um serviço de limpeza eficiente. Poucas horas depois de ter uma multidão pelas ruas, Paris estava impecável.
Mas a polícia…
Para saber mais:
Para alugar cadeiras de rodas, scooter, etc.
Uma nova amiga | Livro de autoria de Lia Crespo
Júlia e seus amigos | Livro de autoria de Lia Crespo
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ah… que delícia de viagem. Paris é sempre paris. Já fui 3 vezes e voltaria… Fui com minha scooter e não tive nenhum problema pra subir nos ônibus. Fiquei em um hotel um pouco afastado dos lugares turísticos, mas não tive nenhum problema para ir e vir de ônibus. Metrô, isso ainda não dá pra usar. Louvre e outros museus, gratuitos para PCD. Banheiros públicos acessíveis para compensar a falta de possibilidade de usar o banheiro dos restaurantes, só que esses banheiros não são muito limpos.
Ei, Andrea! Sim, uma delícia de viagem!
Obrigada pela participação, trazendo mais dicas.
Um grande beijo!