“Farol das Orcas”: escuta e acolhimento do outro

“Farol das Orcas” é muito mais do que simplesmente a história de uma mãe que conduz o filho autista até um biólogo marinho para interagir com orcas. Descubra neste post!

 

Beto Bubas abraça o menino Tristán: uma significativa cena de acolhimento legítimo

 

Muitos anos atrás, deparei com um texto do filósofo e escritor Rubem Alves que me marcou, cujo título é Escutatória.

No início dele, o autor nos adianta que “Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória. Mas acho que ninguém vai se matricular.” (Rubem Alves. In: O amor que acende a lua, pág. 65.)

Durante anos, após ter conhecido esse texto, ministrei oficinas de escutatória, para sempre constatar a diferença que fazia ser de fato percebido como se é. Pois bem: no meu modo de ver, assistir Farol das Orcas equivale a fazer um curso de escutatória, e já vou te explicar por quê! Vamos em frente?

Post atualizado em 31/08/2020

 

O que o filme tem para me oferecer?

 

A narrativa emociona desde o início, quando uma mãe sai de Madri com o filho, em busca de Beto Bubas, o biólogo marinho que vive em uma reserva marítima na Patagônia argentina.

Seu garoto, Tristán, era autista e não interagia, não falava nem se interessava por nada, até que um dia viu um documentário na TV sobre Beto e seu relacionamento com orcas. Foi a primeira vez que saiu de seu isolado mundo e se interessou por algo.

Beto é um homem solitário e também isolado, não apenas geograficamente, já que está fechado em seu mundo emocional. Mas ele terá a vida transformada pela visita repentina da mãe e do filho, que, afinal, também vêm a vida se transformar a partir desse contato.

O filme é inspirado numa história real, mas não a reproduz fielmente. A narrativa original pode ser lida no livro escrito por Bubas, Agustín corazón abierto, que já está na minha lista. Mas, como eu já disse, há algo muito maior nele, que o torna verdadeiramente grande.

 

Quando presto atenção ao outro

 

Farol das Orcas é muito mais do que um filme sobre a tentativa de conduzir um garoto autista até o mundo exterior, já que traz elementos para observarmos o que pode acontecer com qualquer pessoa ao interagir com outra que a escuta profundamente.

No texto de Rubem Alves, o autor observa que “No fundo do mar – quem faz mergulho sabe – a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos”. Conforme observamos no filme, Beto sabia ficar de boca fechada para descobrir Tristán, usando para isso a mesma habilidade que usava ao interagir com as orcas.

Mas sabemos que desenvolver essa habilidade é algo que leva tempo, muito tempo. Nos dias atuais, em que vivemos em alta velocidade, quem é que tem paciência de parar e prestar atenção ao outro? Não é de admirar que as técnicas têm se revelado impotentes nos consultórios e nas clínicas, locais em que, mais que nunca, as pessoas precisam de escuta real.

 

Seja apenas outra alma humana

 

Tenho visto terapeutas de diversas áreas preocupados com a melhor técnica, mas não podemos nos enganar, pois nada supera a escuta atenta, que nos permite saber quem de fato o outro é, e nada é eficaz sem ela.

É o psiquiatra Carl Jung que nos socorre com o seguinte “conselho”: “Conheça todas as técnicas, domine todas as teorias, mas, ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana.” 

 

 

Dissolvendo barreiras

 

Farol das Orcas me comoveu profundamente, pois acredito que o garoto Tristán representa, em alguma medida, cada um de nós, tão carentes de ser vistos/ouvidos em profundidade.

E sugiro que não acredite na percepção de muitos que viram o filme e que creem que o garoto morre no final. Não foi isso que percebi, ao contrário, pois a última cena me pareceu mostrar a confiança que Beto tinha na autonomia de Tristán.

Recomendo fortemente uma dose de Farol das Orcas para todos que desejem se envolver com os demais e criar vínculos, que é capaz de dissolver barreiras e nos mostrar o ser humano para além dos rótulos.

O filme está disponível na Netflix.

 

Roberto Bubas e Agustín (os verdadeiros)

 

 

Para refletir

 

Para aprofundarmos nossa reflexão sobre a importância de nos colocar acessíveis ao outro e escutá-lo em profundidade, compartilho com você trechos de dois autores respeitados.

O filósofo Eugene Gendlin assim se expressou, em um dos capítulos do livro The therapeutic relationship and it’s impact:

Quando me assento com alguém, sei que isto é alguma coisa, mesmo que eu não tenha nada de valor para dizer. Não mais preciso de evidência constante de que estou sendo efetivo e útil. Posso apenas assentar-me e dar a minha companhia. Já estive em situações em que meu sofrimento não podia ser compreendido, mas consegui algum alívio
apenas por estar com alguém que queria estar comigo, sem exigir nada, que não conseguia captar meus sentimentos mas que era uma companhia humana, assim como um lugar a que se possa ir quando aborrecido, ofendido ou perdido, uma presença humana, civilização depois da selvajaria. É muita coisa quando apenas me assento com
alguém. Mas creio que ajuda dizer que pretendo me assentar em silêncio.” [Clique aqui para ter acesso ao texto completo]

 

Na pele do outro

 

Também são importantes estes esclarecimentos do psicólogo Carl Rogers, no livro Um jeito de ser:

 

“Constato, tanto em entrevistas terapêuticas como nas experiências intensivas de grupo que me foram muito significativas, que ouvir traz conseqüências. Quando efetivamente ouço uma pessoa e os significados que lhe são importantes naquele momento, ouvindo não suas palavras, mas ela mesma, e quando lhe demonstro que ouvi seus significados pessoais e íntimos, muitas coisas acontecem. Há, em primeiro lugar, um olhar agradecido. Ela se sente aliviada. Quer falar mais sobre seu mundo. Sente-se impelida em direção a um novo sentido de liberdade. Torna-se mais aberta ao processo de mudança.

(…) Quando percebem que foram profundamente ouvidas, as pessoas quase sempre ficam com os olhos marejados. Acho que na verdade trata-se de chorar de alegria. É como se estivessem dizendo: ‘Graças a Deus, alguém me ouviu. Há alguém que sabe o que significa estar na minha própria pele’. Nestes momentos, tenho tido a fantasia de estar diante de um prisioneiro em um calabouço, que dia após dia transmite uma mensagem em Código Morse: ‘Ninguém está me ouvindo? Tem alguém aí?’. E um dia, finalmente, escuta algumas batidas leves que soletram: ‘Sim’. Com esta simples resposta, ele se liberta da solidão. Torna-se novamente um ser humano. Há muitas, muitas pessoas vivendo em calabouços privados hoje em dia, pessoas que não deixam transparecer essa condição e que têm de ser ouvidas com muita atenção para que sejam captados os fracos sinais emitidos do calabouço.”

 

Trailer legendado:

[Ative as legendas automáticas. Infelizmente, o trailer original com legendas em português não está mais disponível]

 

 

 

Para saber mais:

 

♥ Sobre Farol das Orcas

 

Roberto Bubas esclarece verdade e ficção em Farol das Orcas

Afastado do cargo, o “encantador” de orcas selvagens sente saudade delas

Las orcas que dieron alas a un niño con autismo

Las orcas que ayudaron a un niño autista inspiran una película

 

♥ Sobre o universo das pessoas com autismo

 

Uma pessoa não é uma função. Uma pessoa é uma pessoa.

Nada sobre nós sem nós

 

♥ Outras resenhas de filme neste blog

 

“De carona para o amor” | ironia para tratar de preconceito

“Beleza oculta”: enfrentando a dor da perda

“O Touro Ferdinando” e o processo de autoaceitação

 

 

 

About Laura Martins

Laura Martins criou o blog Cadeira Voadora em 2011 para compartilhar suas experiências de viagem em cadeira de rodas. Para ela, viajar desenvolve inúmeras habilidades, nos faz menos intolerantes por conviver com as diferenças e ajuda a construir inclusão, porque as cidades vão ficando mais preparadas à medida que as pessoas vão se fazendo visíveis. Entre em contato pelo e-mail contato@lauramartins.net.

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