“De carona para o amor” | ironia para tratar de preconceito

De carona para o amor, o filme que vou indicar hoje, fez parte do Festival Varilux, uma das maiores mostras dedicadas ao cinema francês, e tem sido apresentado como uma comédia romântica.

É leve e até pode parecer bobo, mas você verá que não é, principalmente quando a análise é feita sob o ponto de vista de um cadeirante, o que, aliás, vamos fazer agora. E o filme tem sido apresentado como sexista, preconceituoso e por aí vai, mas será que é mesmo?

Eu o vi duas vezes e li algumas resenhas pela internet. Se fizer o mesmo, verá que a maior parte das análises fica na superfície, mas não vamos deixar que isso aconteça. Conto com você para acrescentar lenha na fogueira com sua visão perspicaz!

 

O filme faz um jogo de luz e sombra com Florence e Jocelyn (Imagens: divulgação)

 

 

Jocelyn, um cafajeste

 

De carona para o amor traz Jocelyn, CEO da i-Run, empresa que fabrica tênis para corridas; ele é um profissional bem-sucedido, com uma vida financeira que lhe permite gozar de muitas benesses. É um homem que vive de mentiras, inconsequente, e não hesita em inventar histórias para seduzir as mulheres. Pra você ter uma ideia, logo após o sepultamento da mãe, ele encontra uma “oportunidade” de se passar por cadeirante para seduzir uma mulher.

Mas depressa conclui que foi uma “roubada”, pois acaba se metendo em complicações. Quando aceita um convite para visitar a família da moça, ela o apresenta a sua irmã, que é cadeirante de verdade. A partir desse momento, a trama se enriquece, desdobrando-se em situações em que presenciamos o tratamento no mínimo ignorante que a sociedade dispensa às pessoas com deficiência. No caso, a história se passa na França, mas você verá que não é diferente do Brasil.

A conversa na mesa de refeições ao ar livre, entre Jocelyn, a mulher que esperava seduzir e sua família já revela montes de ideias preconcebidas a respeito do universo do cadeirante. Mas quer saber? Nada desconhecido de nenhum de nós, eu aposto.

Jocelyn é a representação fiel do que há de mais preconceituoso, em vários sentidos, mas ele vai ser “obrigado” a mudar de perspectiva ao longo da história.

 

Observe bem a caracterização que Jocelyn escolhe como cadeirante, que revela seu modo de pensar

 

 

É assim que a sociedade nos vê?

 

Franck Dubosc interpreta Jocelyn e também dirige o filme. Talvez você, tanto quanto eu, perceba que há algo de muito intencional nesta história e que o diretor tem cartas na manga. Ou seja, ele não deseja apenas fazer piada de mau-gosto e politicamente incorreta, como teve gente que acreditou. Numa das reportagens que li, fiquei sabendo que a mãe de Dubosc usa cadeira de rodas, o que lhe permitiu uma visão mais crítica da realidade. Viu? Eu tinha razão…

Se prepare porque você pode passar raiva, pois vão desfilar diante dos seus olhos cenas em que Florence, uma cadeirante ativa, que é atleta e musicista, enfrenta os preconceitos comuns pelos quais passamos todos os dias. O próprio Jocelyn, no início da encenação como cadeirante, opta por usar roupas que, no seu imaginário, representariam uma pessoa que vive reclusa, não trabalha, não pratica esportes, não namora…

A família de Florence tem uma visão totalmente distorcida do mundo de uma pessoa com deficiência, mas será diferente do que acontece talvez na maior parte das famílias? A secretária de Jocelyn usa o deboche quando percebe que ele pretende patrocinar atletas cadeirantes. De novo: será diferente no cotidiano, ainda que atualmente muitas empresas já tenham descoberto que é lucrativo patrocinar atletas com deficiência? São apenas perguntas…

 

Se você é “deficiente”, para a sociedade é certo que você terá um parceiro afetivo “deficiente” 😉

Ah, a família de Florence! Tão cheia de visões preconcebidas quanto as demais pessoas…

 

 

Piadas ofensivas? Filme sexista?

 

Fico me perguntando se, atualmente, estamos conseguindo enxergar as coisas de acordo com um ponto de vista maduro, sem recorrer às patrulhas e aos preconceitos de direita, de esquerda, da galera do politicamente correto, dos anticapacitistas e por aí vai. Eu te convido a pensar com a própria cabeça e o próprio coração.

O filme mostra um personagem construído como mentiroso, sedutor, machista, mas não justifica o comportamento dele; pelo contrário, faz uma crítica ácida e o apresenta como um idiota que não percebe a si mesmo. Contudo, a crítica pode passar despercebida, porque recorre a uma ironia que nem sempre é explícita.

Do mesmo modo, apresenta os preconceitos mais cruéis, mas não os justifica. E não é o discurso dos personagens que mostra isso, mas sim, de novo, a ironia, assim como a atitude de personagens como Max, que atuam como contraponto. E também a mudança vivida por Jocelyn ao longo da história, que pode até ser previsível e ser um clichê, mas tem a função de confirmar que o filme não abona o preconceito.

Pode ser que a história nos incomode sim, por tocar nas feridas e jogar na nossa cara atitudes sociais que são difíceis de engolir, mas tudo que ele não faz é concordar com essa chaga.

 

Ao longo da história, a relação entre Florence e Jocelyn vai mudar bastante, e a visão dele mais ainda

 

Contraste entre Florence e Jocelyn

 

E como o diretor constrói a personagem Florence? Vê-se nitidamente que ele de fato ama uma pessoa cadeirante, porque oferece à personagem características encantadoras. Por outro lado, estabelece um contraponto, trazendo o falso-cadeirante Jocelyn para atuar como extremo oposto. Trata-se de um jogo de luz e sombra, como numa pintura, em que o contraste realça o que é mostrado.

Florence lida com as circunstâncias de forma madura, ora com humor, ora com firmeza, mas também somos testemunhas dos seus sentimentos de tristeza e frustração no relacionamento amoroso. Ela é bonita, talentosa, madura, ativa. É tenista e toca violino, usa roupas sensuais, com cores vivas, e tem o cabelo moderno e sensual.

Jocelyn inicia como um cadeirante “despencado” numa cadeira de rodas antiquada, pesada, usando roupas largas, fora de moda, em tons acinzentados. É superficial, egoísta e não percebe nem os sentimentos próprios, nem os alheios.

A forma como ambos se apresentam socialmente revela como se veem e como enxergam a deficiência. Portanto, vê-se que nada é casual no filme, nem mesmo o título em francês, que é também a frase que está registrada na campanha publicitária da i-run: Todos de pé.

 

Esta cena eu printei: observe a publicidade atrás de Jocelyn. A frase significa: “Todo mundo de pé”

 

Sexo com e entre cadeirantes

 

Este trecho contém spoiler. Portanto, caso você não queira antecipar detalhes da história, pode pular esta parte.

Um dos assuntos em que o filme toca diz respeito a outra visão distorcida que se tem a respeito da pessoa com deficiência, especialmente se for física. De modo geral, a sociedade pensa que não fazemos sexo, e também não sentimos prazer sexual, o que, perceba, são duas coisas diferentes.

Os dois personagens cadeirantes contam que são paraplégicos e que essa condição é sequela de acidente; de cavalo, no caso de Jocelyn, e de automóvel, no caso de Florence. Pelo que se percebe, a lesão provocou tanto perda de movimentos quanto de sensibilidade nos dois, ainda que ele esteja inventando, mas o inventado passou a ser a sua realidade no relacionamento com a moça.

Tudo isso deve ser levado em consideração para compreender os diálogos, inclusive entre Jocelyn e Max, porque eles tratam da questão da ereção e da ausência de sensibilidade. Mas é preciso ter em mente que nem todo cadeirante perde movimentos e sensibilidade.

 

Eu achei uma lindeza Florence chegar para o jantar usando um elegante vestido decotado vermelho, o que é revelador de suas intenções

 

Com emoção ou sem emoção?

 

Florence, após o sexo, aponta a própria cabeça quando seu parceiro quer saber se ela sentiu prazer. Conforme Sigmund Freud nos contou, de fato, com qualquer pessoa, o prazer está na cabeça: na forma como lida com as sensações e os sentimentos, no jeito como interage com o parceiro ou a parceira, no processamento de possíveis traumas e por aí vai.

Com um cadeirante não seria diferente. Contudo, é preciso acrescentar que alguns, de fato, tiveram perda de movimento e de sensibilidade, e a troca de informação entre corpo e cérebro foi afetada pela lesão. Sendo assim, pode haver, pelo menos no início da vida com a deficiência, alguma dificuldade para lidar com a sexualidade. Mas isso não significa que a pessoa não sinta prazer, ainda que ela não tenha orgasmo, porque as duas coisas são diferentes, e no homem também.

E, como há pessoas usando cadeira de rodas por razões diversas, há também cadeirantes que têm preservada a sensibilidade, assim como os movimentos, em graus variados. Então, o prazer físico também poderá estar preservado.

O filme não mostra – e aqui não vai nenhuma crítica, porque em 1h30 não dá pra abordar detalhes – que a pessoa faz sexo com o corpo inteiro, e não exclusivamente com os genitais. Então, como vemos no fantástico Intocáveis, na cena das orelhas, se uma área do corpo tem a sensibilidade preservada, é possível que ela seja particularmente sensível, muito mais do que nos que não têm deficiência. Pense nisso quando for fazer sexo – e tire proveito!!

 

Talvez você precise ver mais de uma vez para observar como os olhares vão se alterando ao longo da história. E como ambos os personagens lidam com as emoções.

 

 

Para além dos clichês

 

Apesar de o filme ser em boa parte previsível, e de recorrer a clichês, eu gostei bastante, por tudo o que relatei.

Acho que ele nos ajuda a elaborar psicologicamente as situações que nós, pessoas com deficiência, experienciamos. Além disso, colabora para levar ao público uma visão mais próxima da nossa realidade, para que os pontos de vista possam ser questionados.

O diretor escancara os preconceitos às vezes de forma ácida, sempre disfarçada de humor. Pode crer: sua risada será amarela.

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Um beijo vermelho!

Laura Martins

 

 

Para saber mais

 

 

 

 

 

About Laura Martins

Laura Martins criou o blog Cadeira Voadora em 2011 para compartilhar suas experiências de viagem em cadeira de rodas. Para ela, viajar desenvolve inúmeras habilidades, nos faz menos intolerantes por conviver com as diferenças e ajuda a construir inclusão, porque as cidades vão ficando mais preparadas à medida que as pessoas vão se fazendo visíveis. Entre em contato pelo e-mail contato@lauramartins.net.

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