Faixa de pedestres “acessível” para pessoas mais lentas?

Faixa de pedestre considerada acessível pela reportagem da Globo. Ela tem o símbolo internacional de acesso pintado ao lado da faixa zebrada.

Esta é a faixa de pedestres que a reportagem mostrou

Quando, em 2020, alguém nos enviou um vídeo pelo WhatsApp, mostrando uma faixa de pedestres com o Símbolo Internacional de Acesso, não entendemos nada… Afinal, qualquer faixa de pedestre tem a obrigação de ser acessível. 

Então, seria esta faixa destinada somente a pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida? 

Ou quem sabe ela foi instalada para pessoas mais lentas, com alguma dificuldade de locomoção… Será? 

Alguns dias depois, ficamos ainda mais surpresos, pois uma reportagem do telejornal Bom dia Minas, da Rede Globo, mostrava o mesmo vídeo, que havia sido produzido com celular. E a iniciativa estava sendo considerada positiva…

[Assista ao vídeo abaixo]

Mas eu te pergunto:

Esta faixa é, de fato, uma boa iniciativa? E, afinal, ela é acessível ou não? É inclusiva ou não?

 

[Post publicado em dezembro de 2020 e editado em junho de 2022]

 

Afinal, que faixa é esta?

 

A faixa está na região hospitalar de Belo Horizonte, onde se localizam duas importantes instituições: a Santa Casa e o Hospital São Lucas. Segundo a reportagem, a instalação teve como objetivo facilitar a travessia de cadeirantes e pacientes em macas.

Ainda entrarei em contato com a empresa de trânsito da Capital, para me certificar sobre o que levou os responsáveis pelas intervenções a tomarem essa iniciativa. Entretanto, penso que podemos começar a refletir a respeito, para avançar na compreensão do que seja acessibilidade e inclusão.

Certamente, algumas tentativas de implementar acessibilidade podem até parecer boas, mas será que são mesmo?

 

 

Por causa desse “parece, mas não é”, inicio, agora, uma nova coluna no blog. Eu a batizei com o simpático nome de “Ideia de Jerico”. Caso não conheça a expressão, fique tranquilo, pois mais adiante vou te explicar o significado.

Por ora, que tal falarmos sobre a faixa?

 

Inclusão x Segregação

 

Para começarmos a refletir sobre o assunto, “inventei” uma historinha.

No começo, Deus criou os passarinhos e muitos outros animais. Todos viviam integrados, interagindo de forma equilibrada. Os ecossistemas se mantinham em harmonia, como resultado das próprias leis naturais.

Aí, Deus teve a feliz ideia de criar os seres humanos. Eles, então, começaram a capturar e engaiolar os pássaros, usando a desculpa de que “pobrezinhos, não são capazes de sobreviver soltos na natureza”.

Foi assim que as habilidades desses animais foram se empobrecendo, até que se esqueceram de que podiam voar. Agora, seu canto é triste, porque passarinho não foi feito pra ficar em gaiola.

O que isso tem a ver com a faixa de pedestre? Aposto que você já descobriu!

 

Cada qual no seu quadrado

 

Lamentavelmente, os seres humanos criaram, também, uma forma de engaiolar pessoas. E espertamente, ao longo dos séculos, foram arranjando justificativas para essa atitude.

Na verdade, pessoas colocaram outras em compartimentos, separando-as das demais, em razão da falta de poder econômico, da raça, do gênero, da religião e por aí vai. Houve um tempo em que pessoas com deficiência, mesmo em sociedades ditas avançadas, ficavam escondidas em um quartinho no fundo de casa.

Daí, alguns engaiolados rebeldes resolveram sair e lutar para que outros também abrissem as portas da gaiola e voassem. Chamaram a isso de “criar condições e oportunidades”, “fazer acessibilidade”, “incluir” e até “empoderar”.

Estes “rebeldes” sabiam que não precisavam de tutela, já que também poderiam caçar minhocas, acasalar, cuidar dos ferimentos… Porém, estavam cientes de que era necessário terem condições dignas de realizar seus desejos e cuidar de suas necessidades. E, é claro, era justo que tivessem os mesmos direitos que os outros pássaros tinham.

Afinal, eram pássaros, mesmo não tendo as mesmas características que os demais.

 

Tutela, não!

 

Nós, pessoas com deficiência, não precisamos de gaiolas, no sentido de que não precisamos que nos separem dos outros e administrem nossas vidas.

Foto mostrando bebedouro separado para negros, nos EUA

Bebedouros para brancos e negros na Carolina do Norte (1950). Créditos: Elliot Erwitt

Afinal, podemos administrá-la, cuidar de nós e até mesmo dos nossos filhos e da sociedade.

Porém, precisamos, sim, de leis e normas para podermos entrar no espaço dos pássaros livres, pois, do contrário, eles não permitiriam nossa “invasão”.

Tais como os negros nos EUA ou na África do Sul, até os judeus nos campos de concentração, passando pelas mulheres (discriminadas em praticamente todas as sociedades e épocas) e por tantas outras pessoas, não queremos e não podemos viver separados.

Lembra-se de que os negros não podiam tomar água no mesmo bebedouro dos brancos? Sabia que mulheres só tiveram direito a voto recentemente? Já ouviu contar que, na Grécia antiga, recém-nascidos com deficiência eram abandonados? Chega disso, né?

 

Por que uma faixa separada?

 

Todas as imagens são do Canva, exceto quando indicado. (Licença de uso paga)

Se já existe uma faixa de pedestres, para que criaram outra?

Acima, já fiz algumas considerações sobre o fato de que separar as pessoas não pode dar bons resultados…

Mas vamos além?

Conversando com um amigo, chegamos a algumas conclusões, que vou compartilhar com você, para que forme sua própria opinião. E também aproveito para resumir a história toda!

 

Misturados, não separados

 

O ideal é que estejamos juntos e misturados com os outros, já que não somos seres à parte. Então, não deveria haver duas travessias, mas somente uma, para todos.

As leis brasileiras especificam que a travessia deve ser segura para todas as pessoas.

Então, tanto faz se você é idoso, se está com sacola de compras, de salto alto, passeando com seu cachorro ou usando um andador. Ela precisará ser segura para você.

Ainda não sei se a BHTrans, o órgão responsável pela instalação da faixa de pedestres “acessível”, tem a intenção de que ela seja exclusiva para pessoas com deficiência. Pintar nela o Símbolo Internacional de Acesso indica que é acessível, não exclusiva.

Porém, uma coisa é certa: ela não é acessível, conforme vou te mostrar abaixo.

Caso a intenção seja de exclusividade, o caso fica pior. Por exemplo, se eu, que sou cadeirante, for atravessar a faixa com alguém sem deficiência, irei por uma faixa e a pessoa pela outra?

 

4 crianças brincam com uma bola. Uma delas é cadeirante.

Queremos estar com as outras pessoas, e não segregados

Não precisa inventar, basta cumprir a lei

 

O que podemos concluir da situação, examinando as leis sobre acessibilidade?

⇒ Toda faixa de pedestre tem que ser acessível. Se não for, temos o direito de recorrer aos órgãos competentes e reivindicar alterações, ou fazer uma queixa ao Ministério Público.

⇒ No caso que examinamos, se a faixa existente não era acessível, por que não cumprir a lei, tornando-a acessível, em vez de instalar outra faixa? E, se ela era acessível, podemos concluir que a nova é inútil.

⇒ Se for necessário, assista de novo a reportagem. Você notará que a localização da faixa “acessível” fará com que a pessoa “lenta” fique “escondida” pelos demais pedestres, que estarão entre ela e os automóveis (e mais altas que ela, se for um cadeirante). Se um motorista desrespeitar os pedestres, e estes saírem correndo, quem estiver na faixa de pedestres “acessível” ficará para trás. Como resultado, a pessoa pode ser atropelada, já que não consegue correr. Sendo assim, concluímos que a instalação não é segura e, portanto, não é acessível.

De tudo que foi dito acima, o mais importante, no meu modo de ver, é compreender que incluir é misturar. Tudo que separa exclui.

Se o tempo para atravessar é curto, aumentemos o tempo para todos ou criemos outras soluções. Porém, elas sempre deverão abranger todo o universo de pessoas.

A seguir, finalmente você ficará sabendo o que é uma “ideia de jerico”. Vamos em frente?

 

O que é “ideia de jerico”?

 

Um jumento deitado no gramadoPessoas que fazem asneiras costumam ser comparadas a um jumento, que, no Nordeste do Brasil, também é conhecido como jerico.

[É comum as pessoas pronunciarem “jirico”]

A expressão “ideia de jerico”, portanto, é usada quando alguém tem uma ideia estranha, quando é uma asneira.

Anteriormente, expliquei por qual razão essa faixa de pedestres, na verdade, não é acessível. Mas por que eu poderia considerá-la uma asneira?

Para começar, se ela é desnecessária, seria uma atitude inteligente insistir com a ideia? Em segundo lugar, se ela segrega, estaria de acordo com a ética e as leis? Em terceiro, se não é segura, que outra consideração eu poderia fazer?

Por fim, em quarto lugar, as leis brasileiras já foram além da acessibilidade quando reconhecem que é necessário incorporar o conceito de “desenho universal“. Ou seja, isso significa pensar antes de fazer, para não ter que adaptar depois. E não só, mas pensar em algo que seja bom para o máximo possível de pessoas, e não apenas para alguns.

 

Uma mulher digita ao celularAgora quero saber sua opinião!

 

E você, o que pensa sobre o assunto? Concorda ou discorda da minha reflexão?

O que você acha de um órgão de comunicação, e de uma empresa do porte da Globo, cometer um engano desse tamanho, quando elogia uma iniciativa equivocada? Os jornalistas não deveriam conhecer as leis e a realidade das pessoas com deficiência?

Por fim, o que você pensa a respeito do órgão de trânsito da terceira capital do país ter autorizado essa intervenção ilegal? Deixe um comentário!

 

Para saber mais:

 

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Compreenda o que é desenho universal

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About Laura Martins

Laura Martins criou o blog Cadeira Voadora em 2011 para compartilhar suas experiências de viagem em cadeira de rodas. Para ela, viajar desenvolve inúmeras habilidades, nos faz menos intolerantes por conviver com as diferenças e ajuda a construir inclusão, porque as cidades vão ficando mais preparadas à medida que as pessoas vão se fazendo visíveis. Entre em contato pelo e-mail contato@lauramartins.net.

4 Comments

  1. Kátia Ferraz Ferreira

    Muito pertinente o artigo pois o exercício de pensar nas questões da pessoa com deficiência é preciso de tais ponderações. Adorei as colocações

    • Kátia, muito grata pela visita! Fico satisfeita por vc ter gostado das ponderações.
      E tem razão: precisamos muito desse exercício do pensar nas questões da pessoa com deficiência.
      Abraço!

  2. Denise Martins Ferreira

    Laura, vc é admirável! De forma bem didática esclareceu o que está acontecendo em nome do ” fizemos o melhor!” e confesso que cai direitinho! Por isso a beleza do aprender a aprender! Estar aberto sempre a ouvir que conhece e quem nos traz a fazer reflexão. Desenho universal! Ainda é um conceito que precisamos incorporar em nossas vidas para o bem estar de todos os cidadãos. Uma coisa é certa! A BHTRANS não conhece a legislação e as normas da ABNT? Resolveram criar, quem é o indivíduo que teve o poder de colocar sua criação em uma área de tamanha importância? Será que “ele” usou a área e as pessoas para seu projeto piloto de pesquisa no trânsito? Teve autorização dos órgãos de pesquisa com seres humanos? O Conep? Como a BHTRANS pode manifestar como de sua responsabilidade um projeto deste? Deveriam pedir desculpas ao membros da ABNT e estes dado uma baita advertência!

    • Denise, vc sempre tão generosa comigo! Só posso agradecer pelo carinho!

      Grata pelas ponderações. Sim, o conceito de “desenho universal” ainda é um ilustre desconhecido e precisa ir sendo apresentado de forma didática.

      As perguntas que vc apresenta são pertinentes. Procurarei me informar a respeito.

      Abraço!

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